João Senna relembra os 48 anos de jornalismo e ''pendura as chuteiras''

Wôlmer Ezequiel

Nos últimos anos, João Senna retornou à Editoria de Esportes do Diário do Aço

Filho de lavradores, criado na Zona da Mata de Minas Gerais, e homem de uma sabedoria e cultura admiráveis, o jornalista João Senna dos Reis fez história na imprensa regional durante 48 anos. Com 71 anos, Senna se despede da redação do Diário do Aço com o coração e a cabeça cheios de recordações da vivência do jornalismo.

João Senna destacou que se afasta definitivamente e que terá outras prioridades a partir de agora. “Esta cachaça foi boa e, felizmente, não tive cirrose. Estou pendurando as chuteiras da produção diária de notícia. Estarei dedicando o tempo ao meu neto, Daniel, que nascerá em meados do mês de novembro e ficarei mais próximo da minha família. Ainda avalio a possibilidade de escrever artigos para a página de Opinião”, informa Senna.

Infância

Nascido em 30 de abril de 1947 no pequeno município de Jequeri, próximo à pujante Ponte Nova, João Senna desde criança foi acostumado a estar na lida da roça com seus pais, mas também não dispensava o estudo. “Me lembro que desde os cinco anos eu levantava antes do sol nascer para aguar uma montanha de cebolas, só depois é que tomava um café reforçado, desses de roça. Apesar do trabalho árduo, os meus pais nunca abriram mão do meu estudo. O meu pai era semianalfabeto, mas ele me ensinou a respeitar a minha mestra, e logo eu entendi que a professora é a primeira autoridade. Acho que o tropeçar, cair e levantar faz parte do processo de crescimento de uma pessoa”, destaca o jornalista.

Após passar um período no município vizinho, Santo Antônio do Grama, Senna e seus familiares se mudaram para Belo Horizonte no fim da década de 1960. Na capital mineira, a família enfrentou dificuldades e passou a comercializar frutas, verduras e legumes em carrinhos ambulantes. Era o momento da superação.

Formação intelectual

Como tradição da época, um rapaz da família sempre era designado para ser padre. João Senna foi o escolhido para seguir a carreira religiosa. O jornalista conta que no início até acreditou ter vocação, mas acabou desistindo. Porém, ele afirma que foram esses ensinamentos que auxiliaram na formação de seu caráter e que, possivelmente, o influenciaram a tomar o caminho da comunicação.

“Eu brinco que, quando inventaram a minissaia, eu desisti de ser padre. Brincadeiras à parte, tive um grande reforço intelectual quando fui para o Pré-seminário Nossa Senhora Aparecida, em Muzambinho, e posteriormente no Seminário Seráfico Santo Antônio, em Santos Dumont, ambos da Ordem dos Franciscanos. Foi algo que transformou minha vida, pois aprendi latim, francês e diversos outros conhecimentos que me prepararam para a vida aqui fora”, conta Senna.

Portas abertas

Ao desistir de dedicar a vida para a Igreja, o jovem Senna retornou para Belo Horizonte, onde voltou à vida de vendedor ambulante. Ele conta que seu retorno à capital foi justamente no período de ascensão do regime militar ditatorial. “Voltei para Belo Horizonte. Em 1965 completei 18 anos e fui me alistar. Por ser dentro do regime, eles não estavam entregando o certificado de reservista. Então, mesmo com uma boa formação e ser selecionado nas entrevistas, no momento de contratação eu era dispensado por não ter o documento. Precisei voltar para as ruas com o carrinho de verdura. Em conversa com uma cliente, ela me ofereceu um emprego na empresa do marido dela, a Minas Gráfica Editora, assim que eu tivesse o meu certificado. De fato, ocorreu assim e fui trabalhar na empresa do Olavo e Sidney”, pontua Senna.

Trabalhando como impressor na gráfica, João Senna conheceu a repressão do regime à imprensa e precisou prestar depoimentos no Departamento de Ordem Política e Social (Dops). “Mesmo contra as recomendações, na gráfica eram rodados materiais de grêmios estudantis, entre outras entidades, que iam contra o governo militar. Por isso eu tive que parar a produção e fui convocado para depor por diversas vezes. Até que eu não fui ameaçado de morte nesta época, mas a cobrança e vigilância eram duras”, afirma João Senna.

A chegada ao Vale do Aço

Um dos clientes da Minas Gráfica era o senhor Wilton Rodrigues, fundador do Diário da Manhã e, posteriormente, diretor do Diário do Aço. Ao adquirir um maquinário de impressão, Wilton convidou Senna para vir ao Vale do Aço por três meses, para orientar os demais funcionários a respeito da operação da máquina. Rapidamente, Senna passou de impressor para repórter e editor.

“Em 1969 vim para Ipatinga pela primeira vez, com a intenção de ficar 90 dias. Mas antes do fim deste prazo, muitas pessoas me questionaram se eu não desejaria ficar e construir uma cidade. Ipatinga, nesta época, era algo meio estranho. De um lado da linha do trem havia os bairros com infraestrutura e do outro, toda uma cidade ainda por fazer. Contudo, eu me encantei pelo povo daqui e decidi ficar. Logo, o Wilton viu que eu tinha uma capacidade para escrever e fui chamado para compor a redação do Diário da Manhã”, relembra o jornalista.

Desafios da apuração

Logo na primeira reportagem, Senna passou por uma prova de fogo, a cobertura da posse dos prefeitos do Vale do Aço. Por questões técnicas, a reportagem saiu uma semana após as cerimônias. “Fizemos a cobertura, mesmo com este ‘atraso’, o jornal vendeu igual água, era o que tinha para a época”, conta.

Outro momento desafiante no início da carreira de Senna, foi a publicação da matéria sobre o espancamento de uma mulher que trabalhava como prostituta na região conhecida como Joá, por um soldado, em pleno o regime militar.
“Tomamos conhecimento de que os fatos eram totalmente o contrário do que estava no boletim de ocorrência. Então publicamos com o título ‘Polícia exagera na dose e quase mata mulher’. Por pouco eu não fui morto, pois eles possuíam o AI5 e a Lei de Segurança Nacional, que davam amparo para os militares fazerem o que queriam. Mas, espertamente, eu havia informado para os que me pressionaram que eu tinha um habeas corpus preventivo feito pela atual desembargadora Márcia Milanez”, fala em meio aos risos.

Exemplo para os colegas de profissão

João Senna destaca que o Diário da Manhã foi pioneiro da comunicação no Vale do Aço. Contudo, no Diário do Aço o fazer jornalístico ficou ainda mais encorpado. Profissionalizou-se a atividade no âmbito regional.

“Mesmo com as espadas do regime de exceção sobre as nossas cabeças, foi possível realizar muita coisa ainda no Diário da Manhã. O Diário do Aço já surgiu com uma certa credibilidade e com a exigência da sociedade por um jornal mais dinâmico. À essa época, o jornal já estava em pé de igualdade com jornais das grandes cidades”, conta Senna.

DA

Desde a década de 1980, Senna passou a atuar no Diário do Aço, local onde foi considerado como um professor por diversas gerações de jornalistas.

“O Diário do Aço teve grandes redações, com muitos repórteres e coberturas intensas. Às vezes, virávamos a noite como no impeachment do Fernando Collor e na Copa do Mundo dos Estados Unidos, por exemplo. Pude ensinar e aprender com diversas gerações que passaram pelo DA. Eu tinha a vivência diária do jornalismo e pude ensinar isso, as novas gerações tinham o conhecimento da academia e eles também me ensinaram”, pontua.

“Atuei como editor de cidades por muito tempo, tive uma breve passagem pela editoria de Esportes, que foi assumida de forma brilhante por um matuto vindo de Marliéria, meu amigo Waldecy Castro, e retornei como editor de cidades. Após um tempo, tive o presente de encontrar com o Alex Ferreira, que estava se desligando da Rádio Itatiaia, e lhe fiz o convite para integrar a equipe do DA, que hoje é comandada por ele”, relembra Senna.

Rumos do Jornalismo

Para João Senna, a cada dia mais o jornalismo mostra para a população a sua necessidade. Ele acredita que há uma grande transformação, em andamento, para o fortalecimento da imprensa em breve. “O atual momento é muito bom para refletirmos acerca disso. Na chegada das mídias sociais, muita gente decretou o fim dos veículos de comunicação tradicionais.

Mas vemos que não faltam irresponsáveis para fazer uso das mídias sociais, tanto que nas eleições as fake news assumiram tal proporção que muitos órgãos de imprensa decidiram trabalhar para mostrar a verdade, mostrando o que é fake ou não, com os serviços de checagem. Os veículos de comunicação têm uma série de compromissos legais e éticos para cumprirem. Então ao contrário do fim, pode ser um prenúncio de uma nova era para o deslanchar dos jornais diários, sites noticiosos, emissoras de rádio e tv, entre outras plataformas”, conclui João Senna.

Fernando Lopes


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