O médico de 40 mil partos

José Célio de Sousa

Cantídio Cotta foi um dos primeiros médicos a notar a alta incidência de bebês vítimas de anencefalia na região

Numa projeção hipotética, com base no número da população, o médico Cantídio Cotta de Figueiredo fez o parto de 30% das gestantes fabricianenses, já que mais de 30 mil bebês nascidos na cidade vieram ao mundo por meio de suas mãos. Na realidade, ao longo de 48 anos como ginecologista e obstetra na antiga Casa de Saúde Nossa Senhora do Carmo, o número exato de partos feitos por ele, supera em muito este número. Levantamento feito por uma secretária nos arquivos da instituição, no ano 2000, indiciou o total de 32 mil partos. Como, no entanto, somente em 2012 ele deixou de entrar numa sala de cirurgia, esse número é muito mais expressivo. Se contarmos ainda sua experiência como interno na Maternidade Clara Basbaum, Pronto Socorro do Hospital Souza Aguiar e 23ª Enfermaria da Casa de Misericóridia, no Rio de Janeiro, o médico realizou mais de 40 mil partos.

Em meados dos anos 1960, quando começou a trabalhar no hospital que teve entre os fundadores seu futuro sogro, Pedro Sampaio Guerra (um dos mais importantes pioneiros da medicina na região), a média de partos era de 500 procedimentos mensais; metade deles praticado por Cantídio Cotta de Figueiredo. “Eu vivia mais no serviço do que na minha própria casa”, recorda, insinuando que talvez por esse excesso de trabalho, seus três filhos “não quiseram exercer a profissão de médico”. (André é professor universitário de música, Luciano é biólogo ambiental do Ibama, e Matheus é arquiteto do Iphan).

Ter sido o responsável por tantos nascimentos, entretanto, tem suas vantagens. É comum ele ser reconhecido e cumprimentado na rua ou lugares públicos por alguém que nasceu sob seus cuidados médicos. Existem casos curiosos dessa sua notoriedade. Um deles ocorreu bem longe do Vale do Aço. Certa vez, um parente próximo, residente na capital paulista, foi providenciar um documento pessoal e quando informou que era natural de Coronel Fabriciano, foi surpreendido por um dos funcionários da repartição, que disse ser fabricianense. Completando que o médico que fez o parto de sua mãe era o “doutor Cantídio”. Outras vezes são pessoas na faixa etária dos 40 anos de idade que o encontram e dizem que ele foi o responsável por seu nascimento. Tais ocasiões, não são raras.

Ser ou não ser?

Sua carreira profissional, contudo, poderia ter tomado um rumo totalmente diferente. A exemplo da maioria das mulheres extremamente católicas do início do século passado, Raimunda Coura Barcellos, a dona Mundeca, queria que o décimo de seus 15 filhos fosse padre. Ele até que tentou satisfazer a vontade da mãe. Ao perceber na juventude, que a rotina diária na fazenda do Tanque, de 56 alqueires, em Alvinópolis, onde seu pai, João Cotta de Figueiredo Barcellos, o Joncota, um “germanófilo por determinação”, segundo definição do filho, produzia vinhos de laranja e jabuticaba não era bem o que ele desejava, ingressou no seminário de Mariana, que também provou não ser o que ele queria.

Embora tenha ficado um tanto desgostosa de ver o filho de volta ao lar, sem que tenha se tornado um padre, sua mãe afinal acabou concordando com a decisão do filho de que poderia ser “um bom católico, mas seria um mau padre”. Logo depois, com pouco mais de 20 anos, o jovem indeciso escolheu que seria médico. Escreveu uma carta a um padrinho que residia no Rio de Janeiro, Cantídio Vieira (seu nome é uma homenagem a ele), solicitando emprego e revelando a intenção de morar e estudar medicina na capital federal; na época, ainda uma cidade que poderia ser chamada de ‘maravilhosa’.

Em 1951, antes de completar 22 anos de idade, saiu da roça e foi para um novo mundo.Mudar-se de uma fazenda do interior, mesmo que ela tenha sido uma das primeiras da Zona da Mata Mineira a possuir eletricidade própria e água encanada, foi uma experiência difícil até o rapaz nascido na pacata Dom Silvério se acostumar ao ritmo agitado da cidade grande. “Tudo era uma novidade. Até o português falado no Rio de Janeiro era um pouco diferente do que eu estava acostumado”, recorda Cantídio Cotta, que antes de entrar para a Faculdade Nacional de Medicina da Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), concluiu o ginásio em um ano pelo antigo Curso Madureza Brasil e depois o também extinto curso científico. Em 1964 obtém seu diploma com especialidade em ginecologia e obstetrícia.

“Juscelista”

Embora confesse que não tenha participado ativamente da vida política estudantil por ter ingressado na faculdade aos 28 anos de idade, sendo por isso chamado por seus colegas bem mais jovens de “vovô”, Cantídio Cotta disse que na efervescência do início dos anos 1950 era lacerdista, portanto, simpático ao implacável jornalista e político Carlos Lacerda e à União Democrática Nacional (UDN). Mas, quando em outubro de 1954 o ex-governador de Minas Gerais, Juscelino Kubitscheck, do Partido Social Democrático (PSD), lançou sua candidatura para presidente nas eleições do ano seguinte, ele relembra que “não tinha como ficar contra os mineiros” e tornou-se um “militante juscelista”. Quase dez anos depois, no dia 13 de março de 1964, dois meses após formar-se em medicina e ainda estar residindo no Rio de Janeiro, estava presente no evento político que inflamou as forças de direita e a ala conservadora dos militares a se unirem para a derrubada do presidente João Goulart.

O Comício da Central ou Comício das Reformas, realizado em frente à estação ferroviária Central do Brasil, reuniu cerca de 150 mil pessoas sob a proteção de tropas do I Exército, unidades da Marinha e Polícia Militar com a finalidade de apoiar o governo na implementação das reformas de base (agrária, bancária, administrativa, universitária e eleitoral) que estavam bloqueadas pelo Congresso. As medidas estendiam ainda o direito de voto aos analfabetos, soldados, marinheiros e cabos, assim como a elegibilidade para todos os eleitores. No meio da multidão tremulavam faixas que pediam a legalização do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e exigiam a reforma agrária.

Não deu outra. Foi a deixa para as forças conservadoras política, militar e empresarial articularem a queda de Jango.
Passados mais de 50 anos do episódio, o que mais ficou na memória de Cantídio Cotta foi o inflamado discurso do então deputado do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) Paulo Alberto Artur da Távola Monteiro de Barros, o Artur da Távola, que depois foi cassado pelos militares e nos anos 1980 foi um dos fundadores do PSDB.

Ao ver o Rio de Janeiro “pegando fogo”, conforme sua própria avaliação, naquele período pré-golpe militar, o jovem médico resolveu voltar para Minas, já que sua mãe também morava com ele num apartamento na Tijuca. Um de seus irmãos, Nestor Cotta, dono de um posto de combustível e de uma casa de peças, o convenceu a vir para Coronel Fabriciano, onde foi convidado pelo “doutor Pedro” a trabalhar na Casa de Saúde Nossa Senhora do Carmo.

Anencefalia e Meningite

Na época, o único de seus irmãos que também é médico, o futuro político Carlos Cotta, trabalhava havia menos de dois meses no mesmo hospital. Em pouco tempo Cantídio Cotta percebeu a alta incidência de bebês que nasciam vítima de anencefalia, doença causada pela má formação do cérebro do feto na gestação e com expectativa de vida muita curta. Atualmente diagnosticada a partir das 12 semanas de gestação, quando é possível a visualização do segmento cefálico fetal, no início dos anos 1960 o exame de ultrasonografia não era utilizado na medicina, o que só foi ocorrer a partir de 1975. “Era uma situação dramática porque não podíamos diagnosticar previamente a doença.
Nem tínhamos muita informação. Na prática era a primeira vez que lidava com a situação.

O que eu sabia sobre anencefalia tinha lido apenas em livros”, confessa o médico. A partir daí a anomalia começou a ser discutida pela Associação de Ginecologistas e Obstetras de Minas Gerais e com o aparecimento nos anos 1970 de casos semelhantes em Cubatão, novas informações e discussões médicas trouxeram mais conhecimento sobre a doença. Mas, no início dos anos 1980, numa conversa sobre o assunto com o então presidente da Usiminas, Ademar de Carvalho Barboza, este respondeu a Cantídio Cotta que “nunca soube ou tinha ouvido falar” da taxa acima da média de anencefalia na região. Na avaliação do médico, somente anos mais tarde, quando as siderúrgicas da região implantaram medidas eficientes de combate à poluição é que o número de crianças que nasciam com a doença diminuiu.

Em meados dos anos 1970 ele presenciou outro grave problema de saúde pública na região, a epidemia de meningite meningocócica que eclodiu em 1971 no país e atingiu o ápice em 1974, cujo número de vítimas em óbito foi abafado pela censura. O médico recordou que junto ao prefeito de Coronel Fabriciano, Amilar Pinto de Lima, tentou conseguir vacinas com a direção da Usiminas, que tinha vacinado toda a população de Ipatinga, mas o esforço foi em vão.

“Ficamos esperando quase três horas para falar com um diretor da empresa. Finalmente, depois de passar várias vezes por onde estávamos sentados, ele disse, talvez em razão da falta de vacinas, que não iríamos consegui-las nem com ajuda política. Mas foi o governo do estado que enviou as vacinas”, ressaltou Cantídio Cotta em seu consultório, um dia antes de completar 89 anos, comemorado no último dia 7 de junho. (* Em colaboração com o Diário do Aço)


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