Governo foi incompetente na greve dos caminhoneiros, diz professor

Os escândalos de corrupção envolvendo não só o PT, mas todos os partidos e seus políticos, a existência de ações judiciais que, após tramitarem por 30 anos, prescreveram, a alta carga de impostos e a falta de atendimento às necessidades mais básicas da população causaram uma crise institucional e de credibilidade, talvez, jamais vista antes no país. Essa insegurança, gerada pela desconfiança, continua fazendo investidores se questionarem se o Brasil está preparado para voltar a crescer após a recessão de 2016 e 2017. Tudo isso culminou com a paralisação nacional dos caminhoneiros, que em ano eleitoral fez os brasileiros se lembrarem de 2013, quando as manifestações de junho foram a expressão da revolta e da insatisfação generalizada do povo contra a atual maneira de se fazer política, mas ainda há muita luta pela frente. Para discutir este tema, o Jornal da Manhã entrevistou o professor da Universidade de Uberaba (Uniube) René Bernardes de Souza Júnior. Doutor em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, René Bernardes possui experiência profissional e acadêmica em várias áreas do Direito, mas também em Ciência Política. 
Jornal da Manhã – Que análise o senhor faz das crises política, econômica e institucional que o país está vivendo atualmente, que afetam a credibilidade não só do governo, mas do Legislativo e do Judiciário?
René Bernardes de Souza Júnior – Quanto à questão política, envolvendo Executivo, Legislativo e Judiciário, concordo que há descredibilidade do povo em relação ao governo, porque em todos os três poderes há pelo menos um membro que causa essa descredibilidade. O povo, então, fica ansioso por mudanças. As eleições estão próximas e as mudanças podem vir de lá. Vamos ver o resultado das eleições, mas veio a greve, ou melhor, a paralisação dos caminhoneiros. Eles mostram que este é um movimento muito popular, porque não está ligado a nenhum partido político, então, não tem relação com um dos três poderes em descredibilidade. Na verdade, está ligado à necessidade, porque em uma mesma semana aumentaram cinco vezes o preço do combustível que eles precisam para trabalhar, o que causou grande adesão popular. Com isso, o governo mostrou sua incompetência e demorou demais em mostrar uma resposta a essa reclamação legítima. Ao contrário, o governo escolheu deixá-los sofrer um tempo para depois ceder um pouco e ver até onde eles poderiam ir. Estrategicamente, o governo se mostrou distante dos anseios da sociedade, pior que isso, distante das necessidades populares. Ele está muito preocupado com o que arrecada e de acabar com o déficit fiscal, mas não está preocupado com aquelas pessoas pelas quais foi eleito para trabalhar, que é o povo. Nós recolhemos os tributos para abater no déficit fiscal que eles causaram com seus privilégios e as mordomias que eles têm.  
JM – E como o senhor vê essa paralisação nacional dos caminhoneiros?
René Bernardes – Quando é assim, vai haver muito mais adesão de outras classes – com outros interesses – a essa paralisação [dos caminhoneiros], porque é um movimento legítimo. Todo mundo está vendo que é legítimo e o governo deveria ver, mas não está vendo, por isso o povo aderiu. Ele [governo] deu R$0,46 de redução no diesel. Resolveu os problemas de todas as pessoas que aderiram ao movimento? É claro que não, até porque os caminhoneiros não se resumem à figura dos manifestantes ou grevistas. Eles são seres humanos, como eu e você, que têm família e amigos. E eles não consomem só diesel, também usam gasolina e etanol, e vivem o mesmo problema da carestia dos produtos que todos nós estamos vivendo. Então, como é que eles iam reagir ao ver essa adesão [do povo]? Com vontade de ficar mais tempo paralisados para resolver mais problemas. Alguns ficaram satisfeitos com os R$0,46, outros não e pensaram em engrossar essa fileira, porque há outros interesses envolvidos também.  
JM – Qual a verdadeira raiz desse problema que levou o povo a também aderir a essa paralisação dos caminhoneiros?
René Bernardes – O maior problema é essa falta de legitimidade da política para representar os anseios do povo. Todos temos anseios. São os mesmos? Claro que não, mas o governo está aí porque nós atribuímos a ele a função e a responsabilidade de cumprir e satisfazer os nossos anseios. É por aí? Não, há um erro social de achar que o governo resolve tudo. Não, nós temos que resolver boa parte. Um exemplo disso é que os caminhoneiros pararam de receber para tentar conseguir mudar alguma coisa. Ou seja, deixaram de atender a um anseio deles para ter uma melhor condição de vida depois. Isso é o que todo mundo deveria fazer. É o que não vemos, por exemplo, nas filas de postos de combustíveis: “Ah não, eu esperei a mudança até agora, não dá mais para esperar”. Ele deixou de gastar o tanque cheio que tinha antes da paralisação, economizou combustível enquanto tinha? Não, ele gastou até o talo e depois disse: “Não vejo a hora de acabar [essa paralisação]”. Então, ele não fez a mesma coisa [que os caminhoneiros]. Ao ver que a reivindicação é legítima, ainda que não sejam as mesmas reivindicações, o povo tem que se solidarizar e pensar no que podemos fazer de certo, ou de errado, para a sociedade, e não só para nós. Estamos falando de deixar de abastecer quando o combustível está caro, mas também de deixar de jogar lixo na rua, de não depredar espaços públicos, etc. Estamos falando do governo também? Sim: “Ô amigão, você é empregado, você tem que trabalhar para nós, não é pelos seus interesses ou daquele grupo que fala fininho no seu ouvido e te convida para festanças. Fomos nós que te elegemos. Está com medo de perder voto?! Quem vota somos nós!”. Se o povo se lembrar disso, governante nenhum esquece. 
JM – Quais podem ser os efeitos e reflexos desse movimento não só na economia, mas na situação política brasileira?
René Bernardes – A economia tem algumas regras básicas, mas que são voláteis. Da mesma forma que ela fica ruim, com a queda de Bolsa e do valor da Petrobras e aumento do dólar, ela pode começar a subir, assim como a nossa credibilidade. Então, a economia é razoavelmente previsível e solucionável. O que é mais difícil é aquilo que depende da mudança humana. Todos sabemos o quanto é difícil mudar em nós aquela coisinha que não achamos legal e que continua na nossa vida. O caminho para nós termos um político que se legitima diante do povo e para aquele staff político que está lá em Brasília hoje se legitimar perante o povo seria se eles mudassem como pessoas, e essa é a dificuldade. Ah se eles falassem: “Puxa, eu não preciso de tantos assessores ou de auxílio-moradia ou de tanto salário, posso viver e desempenhar minha função com menos”… Mas eles não são assim. E a sociedade, de alguma forma, está demonstrando que também não é assim, porque estava com o tanque cheio, torrou o tanque até o fim e depois ficou duas horas na fila do posto, xingando o governo. E eles estão lá, com as regalias deles, xingando o povo, porque nós estamos questionando as suas regalias em virtude da situação econômica do país. Não é a mesma situação? Eu acho e me parece o mesmo ser humano que está por trás das diversas situações. Não há nada, no governo ou na sociedade, que não seja feita por seres humanos. 
JM – Como o senhor vê a movimentação em torno da iniciativa dos caminhoneiros?
René Bernardes – Tem que mudar o ser humano? Tem. Essa é a notícia ruim. Posso dar uma notícia boa? Que passos maravilhosos nós demos para a democracia. Os caminhoneiros ocuparam o espaço público. Chegaram lá pacificamente, deixaram passar o que era de hospital, não entraram em atrito com ninguém, tomaram tiro, não criaram conflito e foi uma manifestação pacífica, ordeira e democrática, legitimaram-se e estão se legitimando. Vimos a solidariedade da sociedade, que viu os caminhoneiros à beira da estrada e levou marmitex, água e outras coisas, porque eles estão lutando por nós também. Dois avanços maravilhosos dos mesmos setores que estou falando desde o início. Demonstraram preocupação com o outro e não apenas com os próprios anseios. São dois pontos que nós nunca vimos no Brasil, que foi ocupar o espaço público de forma legítima, apropriada, democrática e cidadã e, ainda, a solidariedade social ao movimento, que vai ao encontro dos anseios de uma nação. No processo histórico estamos lindos e maravilhosos, mas no processo político e econômico estamos feios. 
JM – E esse vai ser um aspecto mais difícil de se contornar?
René Bernardes – Acredito que não. A economia é volátil. O presidente não pediu renúncia, como aconteceu com Jânio Quadros em 1961: “Nossa, a economia vai despencar, que insegurança é essa?!”. Em relação a dinheiro, o que o ser humano quer? Segurança, saber que terá o suficiente para viver o resto da vida em paz, por isso há a aposentadoria e tudo mais. E o que é o investidor? É um ser humano que quer as mesmas coisas. O Brasil é um país rico e tem um monte de potencial econômico na agricultura, indústria, mineração e prestação de serviço, no talento de seus profissionais, são valores positivos que nós temos para sair da crise num estalar de dedos. O que falta é a credibilidade que vai trazer segurança para nós. Quando tivermos segurança, a economia salta. E digo mais, muito antes da segurança social, quando os investidores virem uma segurança de investimento, eles já estarão de volta, assim a Petrobras e a Bovespa vão subir e vai ficar tudo certo. Seria preciso que o governo chegasse hoje e fizesse aquilo que poderia legitimá-lo, mas não fizeram, que é dizer que não precisam de tantos deputados e senadores, de ter voto por bancada – queremos voto individual, para discutirem as leis antes de elas saírem –, carros à disposição, cartão corporativo sem controle, etc. Dizem que não tem como acabar com o déficit fiscal, então que parem de gastar! Se eles mostrarem que verdadeiramente estão gastando menos, terão credibilidade. As ingerências que o Temer fez na Petrobras, de baixar 16% do tributo e a Petrobras, 30%, e o governo transferir o valor à Petrobras, está mostrando uma relação que já foi reprovada na época da Dilma, o que os investidores não gostaram. Tira o presidente da Petrobras, como os petroleiros estão pedindo, coloca uma pessoa que não tenha nada a ver com o governo [a entrevista foi feita antes do pedido de demissão de Pedro Parente], com carta-branca para uma gerência privada e a fim de fazer a empresa dar lucro, coloca o preço do combustível dentro do parâmetro internacional e para de custear gastos desnecessários da máquina pública, e isso vai legitimar o governo. Nós e os investidores íamos acreditar e isso ia resolver tudo, mas nós sabemos a dificuldade de mudarmos a nós mesmos. Por isso, nosso governo tem mandatos, para elegermos outras pessoas, quando estas não foram capazes de fazer o que nós precisávamos. 
JM – O senhor acredita na possível interferência de outros movimentos ou linhas ideológicas ou até mesmo de políticos nesse processo?
René Bernardes – Existem aproveitadores, com certeza. Primeiro, os caminhoneiros paralisaram, enquanto uma classe profissional com objetivos específicos para poder trabalhar, depois surgiram outras pessoas falando em intervenção militar, o que não tem nada a ver, pelo amor de Deus! Pedir intervenção militar, a quatro meses de uma eleição, é de arrepiar os cabelos. Há ainda quem fale de outras questões, não apenas os combustíveis derivados de petróleo, mas que envolvem corrupção, saúde, educação, segurança, etc. Significa que estamos com um monte de pendências que os políticos não estão dando conta de resolver, porque isso são serviços públicos. Eles precisam entender que erraram e devem passar a agir de acordo com o que o Brasil quer. Se tivessem essa postura, eles se garantiriam e até poderiam conquistar a eleição com o MDB, mas o vício nessa política fisiocrata, que vem desde a época da ditadura militar, é tão grande, que acho pouco provável que aconteça. E esse processo todo só está fortalecendo um candidato, que é o mais radical que tem. 
JM – Tem algum lado positivo nisso tudo?
René Bernardes – Se analisarmos o dia a dia, vamos ver muita coisa ruim, mas se analisarmos o processo histórico, estou achando muito bom. Temos 518 anos e nesse período quem sonha com democracia está querendo que aconteça exatamente o que vem ocorrendo. Agora, nós estamos preparados para sermos democráticos? Não, então essa melhora não vai ser tão boa. Se fôssemos preparados, com combustível no posto ou não, estaríamos andando a pé, porque somos contra o valor do combustível, estaríamos agindo idealmente e poderíamos exigir um Estado ideal. Ocorre que não temos um Estado ideal, porque nós não somos ideais. Enquanto nós não progredirmos, não veremos essa mudança toda que queremos ver nos outros. 
JM – Quais são as perspectivas de formatação do processo político para as eleições de outubro?
René Bernardes – Já está sendo formatado e tudo isso vai ser amplamente utilizado na propaganda política das eleições presidenciais. Vão destroçar o partido da situação e não tem como ser de outra forma, porque eles não tentaram se aproximar do povo. A questão é: quem será capaz de realmente se aproximar do povo e dos seus anseios mais comunitários? É o radicalismo que resolve? Na minha opinião, não.  
JM – Depois de quase 24 meses de governo Temer (MDB), há quem diga que toda essa crise é reflexo dos anos de governo do PT. O senhor concorda?
René Bernardes – Os dois lados têm razão. Tem relação com o que ocorreu no passado? Claro, tudo faz parte do processo político, mas tem a ver também em como os políticos de agora estão querendo equacionar essas contas em déficit e sempre olhando só para um lado, para recorrer, que é a capacidade financeira da sociedade. Esquecendo de cortar despesas. Se você tem um problema na sua casa e está faltando dinheiro, você passa a analisar sua conta de supermercado, o tempo que gasta no chuveiro, e passa a diminuir as despesas, não a aumentar o crédito, porque o seu salário é aquele. Por que o governo tem que ser diferente? O governo tem que fazer a mesma coisa, reduzir as despesas que ele próprio gera sem produzir nada, para sobrar mais crédito em termos de arrecadação tributária, que chega a 45%. Até quando?
JM – Após o impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT), em meados de 2016, seu vice, Michel Temer, e o grupo político ao qual ele pertence aproveitaram a oportunidade para tentar implementar algumas propostas. Algumas vingaram, como a reforma trabalhista e o controle de gasto orçamentário pelos próximos 20 anos, e outras não se concretizaram, como a reforma da Previdência… Como o senhor analisa esse período do governo Temer?
René Bernardes – Eles já estão recebendo o máximo que podem sem escravizar o povo, então, o único jeito seria gastar menos para equalizar o déficit. Eles se preocuparam com isso? Não. A reforma trabalhista criou uma insegurança para o trabalhador, muito maior do que a que já existia antes. A reforma da Previdência ia nos fazer trabalhar muito mais tempo para poder se aposentar, o que também gera insegurança. Aliás, mais uma reforma da Previdência com menos de 10 anos da última. Previdência é uma coisa que você pensa para daqui 20 ou 25 anos da sua vida. E eles querem mudar em menos de 10 anos? Que garantia você vai ter quando tiver entre 60 e 70 anos, se o governo está mudando as regras toda hora? Isso gera mais insegurança para quem já tem uma carga de 45% de tributo, sem saúde e educação. Tudo isso mostra que essas reformas do governo estão muito alienadas das necessidades do povo brasileiro. Não somos um país pobre, somos a 8ª economia do mundo, o dinheiro é que está sendo mal empregado e eles querem ganhar mais. Com o controle dos gastos, eles quiseram economizar nos projetos sociais, educação, saúde e segurança, mas é possível saber o que vai acontecer amanhã ou em 20 anos? Não. O Brasil é um país muito grande, com muita diversidade, e não se pode congelar os investimentos nessa proporção.

Postado originalmente por: JM Online

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