'Confesso que vivi', afirma radialista Edmar Moreira

José Célio de Sousa

Depois de três infartos, duas cirurgias do coração, colocação de um estente, o radialista Edmar Moreira (certas pessoas nunca serão ‘ex’ na sua profissão), enfrentou, recentemente, outro gravíssimo problema de saúde. Uma apendicite supurada com infecção generalizada atingindo os rins, pulmão direito e a bexiga obrigou-o a ficar internado por 90 dias na UTI do Hospital Márcio Cunha. Saiu de lá há cerca de dois meses (“muito agradecido pela equipe médica”) e, felizmente, recupera-se bem em casa. Recuperar a saúde não é novidade na vida do homem que, desde a juventude e parte da trajetória adulta, enfrentou situações arriscadas e perigosas durante os agitados tempos dos anos 1960, pré e pós-ditadura militar de direita no país. Por duas vezes, nessas ocasiões, passou temporadas de convalescença em Tombos, na Zona da Mata mineira, na casa dos pais.

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Na primeira delas, no final de 1963, morava em Governador Valadares e integrava o Movimento de Educação de Base (MEB), ligado à igreja católica, ministrando treinamentos em escolas rurais para monitores do curso de alfabetização de adultos pelo método do educador pernambucano Paulo Freire, experiência inédita que pretendia também despertar a consciência política dos indivíduos, principalmente dos camponeses. Na época, os fazendeiros de todo o país andavam apavorados com a paranoia do comunismo e os rumores de que, de uma hora para a outra, suas terras seriam invadidas e tomadas por uma reforma agrária radical. Nesse clima de inquietações, seu trabalho despertava desconfiança e era encarado como atividade subversiva.

Ao participar do apaziguamento de um conflito às margens da rodovia Rio-Bahia, na região de Mantena, numa área ocupada por sem-terra, foi ferido na perna direita por estilhaços de um tiro de cartucheira que ricocheteou na lataria do veículo que sua equipe usava para se locomover, uma Rural Willys. No momento do disparo, Edmar Moreira estava muito próximo do carro que, segundo ele, era muito visado pelos fazendeiros e proprietários de terra. Todos achando que o trabalho do MEB era mais uma ação dos agentes comunistas. Os pedaços de chumbo foram retirados por um amigo com uma pinça, sem maiores consequências, mas ele teve que ir depois tratar do ferimento em Tombos.

Foi justamente durante sua recuperação, que ocorre o golpe militar na madrugada do dia 1º de abril de 1964. Um pouco antes, ainda convalescendo na casa dos pais, tentou fundar, na cidade, o Grupo de Onze Companheiros, ou simplesmente, Grupo dos Onze, também identificado como Comandos Nacionalistas, movimento liderado pelo então deputado federal Leonel Brizola para consolidar as reformas de base pregadas pelo presidente João Goulart, contra o imperialismo norte-americano e o capital estrangeiro. Já com a perna curada, passa a fazer parte de um grupo teatral formado por jovens de forte tendência esquerdista. A experiência não dura muito tempo. Durante uma excursão, todos são presos em Natividade de Carangola e tratados violentamente por policiais do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), ao apresentarem uma peça baseada no poema Faz Escuro Mas Eu Canto, do poeta amazonense Thiago de Mello.

Repressão militar
Depois de um período de longa inatividade, muda-se para o Rio de Janeiro, onde esteve pela primeira vez em 1962, logo após formar-se em Contabilidade. Agora, em 1967, aos 23 anos, encontra a ex-capital federal sacudida por manifestações e passeatas contra a ditadura militar. No ano seguinte, passará nova temporada de convalescença na casa dos pais. Estava na missa de 7º dia do secundarista de 17 anos Edson Luís de Lima Souto, morto em 28 de março de 1968. Na tarde daquele dia, os estudantes preparavam um protesto contra o aumento no preço da alimentação no restaurante estudantil Calabouço, e acabaram entrando em confronto com a polícia militar, que pensou que os manifestantes iriam atacar a embaixada dos Estados Unidos. Durante a invasão do restaurante pela PM, o estudante levou um tiro no peito.

No dia 4 de abril, uma semana depois, foram realizadas duas missas na igreja da Candelária em memória do estudante morto. Como era de se esperar, as manifestações não terminaram sem quebra-pau. Pela manhã, dezenas de pessoas ficaram feridas por golpes de sabre desferidos pela cavalaria da PM. O governo militar tentou impedir a segunda missa à tarde, mas o vigário-geral do Rio de Janeiro, dom Castro Pinto, não acatou a proibição e, após a celebração, assistida por quase 600 pessoas, ocorreu mais pancadaria, dessa vez mais violenta que a primeira. De mãos dadas, os padres fizeram um corredor da porta da igreja até a avenida Rio Branco para que as pessoas saíssem ilesas, mas a estratégia não deu certo. A maioria foi encurralada pela cavalaria nas ruas adjacentes e o pau comeu solto.

Edmar Moreira foi uma das dezenas de vítimas da truculência policial. Ao tentar escapar da repressão, correndo no meio dos manifestantes, levou um golpe de cassetete de madeira tão forte desferido por um PM montado a cavalo que a pancada provocou um sério derrame pleural. Desta vez, antes de ir convalescer na casa dos pais, passou por uma cirurgia em Itaperuna, cidade fluminense onde nasceu. (A operação foi realizada por um médico seu conhecido). Só depois foi para Tombos recuperar da grave lesão.

Decepção
Apesar de estar envolvido em atividades ligadas às causas sociais e combater a seu modo a ditadura militar, Edmar Moreira não era filiado ao partidão, isto é, ao Partido Comunista Brasileiro, o PCB. “Desiludi-me cedo com o comunismo. Tive amigos que foram fazer estágios técnicos ou treinamentos na Rússia e voltaram decepcionados com o que viram lá. Constataram que o regime comunista não era aquilo com o qual sonhavam”, recorda, confessando que, na época, ficou temeroso com as atitudes radicais demonstradas por grande parte dos comunistas brasileiros contra a burguesia. “Fui numa reunião do partidão e lá fiquei sabendo que existia uma lista de pessoas que seriam fuziladas se os comunistas saíssem vitoriosos. Seria outra ditadura, só que de esquerda”, relembra.

Filho de uma dona de casa e de um alfaiate que depois virou fiscal de barreira entre Minas e o Rio de Janeiro, Edmar Moreira – que foi vereador em Coronel Fabriciano pelo PDT, sigla com a qual foi candidato a deputado estadual – reconhece, também, que sua geração não estava muito preparada caso tomasse o poder nos anos 1960. Sua decepção, no entanto, é maior ainda com a atual situação política no Brasil, onde grande parte dos políticos, nas esferas municipal, estadual e federal, está atolada até o pescoço com a corrupção. “Não existe mais ideologia partidária. Todos os partidos são a mesma coisa, está tudo nivelado por baixo”, critica, enfatizando que o “pior mesmo é desacreditar na democracia” que, para ele, é “utópica”.

Paixão
Voraz devorador de livros, principalmente os clássicos, de filosofia e de história, Edmar Moreira também é um apaixonado fotógrafo amador. Sobre o rádio, que o atraiu desde que era instrutor de monitores do curso de alfabetização de adultos, e que era ministrado pelo sistema radiofônico, ele confessa que, se pudesse, estaria ainda trabalhando. Para quem por mais de 30 anos esteve à frente do microfone não é nenhum exagero. Edmar Moreira chegou a Rádio Educadora em 1971, convidado para fazer um teste de locutor por um amigo de Tombos, Sílvio Pedro, que na época era técnico de manutenção da pioneira emissora fabricianense. Virou diretor artístico e apresentador de dois programas de elevados índices de audiência. O primeiro, “Show dos Bairros”; o segundo, apenas com o seu próprio nome. Indo ao ar pela manhã, o programa “Edmar Moreira” teve um quadro de enorme repercussão, o “Música da Minha Vida”, que dramatizava cartas enviadas pelos ouvintes, aproveitando sua experiência no teatro.

Ao se aposentar, em 2004, Edmar Moreira trabalhava na rádio Itatiaia, em Timóteo. Além do rádio, o grande amor de sua vida foi sua esposa Zélia de Castro Moreira, com quem foi casado por mais de 40 anos e lhe deu quatro filhos e cinco netos. “Foi paixão à primeira vista. Ela era uma mulher muito culta e não consegui superar a dor da sua morte”. Zélia de Castro morreu há três anos. “Ainda sou dependente dela”.


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