Passado sem memória

José Célio de Sousa *

Para as novas gerações, é apenas uma fotografia ou um quadro pintado a óleo, pendurados na parede de alguma repartição oficial. Para os mais velhos, as lembranças da antiga estação ferroviária de Coronel Fabriciano são mais emotivas e, às vezes, inesquecíveis.

– A demolição da antiga estação é um dano irreparável para o patrimônio arquitetônico fabricianense/Arquivo Revista Caminhos Gerais

Exceto raras fotos em poder de colecionadores ou em arquivos de jornais e revistas, a imagem mais icônica do terminal retrata o último trem de passageiros que trafegou pela Estrada de Ferro Vitória a Minas (EFVM) em janeiro de 1979.

A exemplo do quadro da artista plástica Mirian D’Arc Franco, a foto de autoria do falecido fotógrafo Argemiro Ribeiro imortalizando o momento histórico – e que serviu de modelo para a obra – também deveria ser considerado um bem tombado pelo Patrimônio Cultural da cidade.

A demolição da elegante e clássica edificação é um exemplo típico e, infelizmente, não raro, da falta de visão nacional pela preservação dos bens arquitetônicos históricos do país. Com plataforma medindo mais de 30 metros de extensão, uma das três maiores da EFVM, a estação da Barra do Calado foi construída em 1922.

Seguindo determinações técnicas, os terminais eram construídos antes da linha férrea. Dessa vez, em razão do solo pouco consistente do trecho da estação da Pedra Mole (próximo ao atual bairro Cariru, em Ipatinga), o traçado da ferrovia transferiu-se posteriormente para o Centro do incipiente povoado que deu origem a Ipatinga. Somente em
março de 1924 é que a Estação Raul Soares, depois Calado, depois Coronel Fabriciano, foi inaugurada.

A histórica imagem do último trem é de autoria do falecido fotógrafo Argemiro Ribeiro/Arquivo Revista Caminhos Gerais

Nos 1920, o povoado da Barra do Calado, à beira dum caudaloso e piscoso Rio Piracicaba, cercado por matas nativas, não chegava a ter uma centena de moradores. A oeste, o povoado de Santo Antônio do Piracicaba (ou pejorativamente, do Gambá), futuro distrito de Melo Viana, contava com pouco poucos habitantes, embora formado por extenso bananal. A atual Baixada, formada pelos bairros Giovannini e Júlia Kubitschek, era área de duas fazendas.

À direita, a propriedade pertencia a Joaquim Gomes da Silveira Neto, primeiro superintendente regional da Belgo-Mineira; à esquerda, desde a velha estação rodoviária até o Melo Viana, terras do pioneiro Alberto Giovannini.
Gravata borboleta

Até início dos anos 1940, quando teve início o transporte de minério de ferro desde Itabira até o porto de Vitória, os trens da EFVM serviram para transportar mercadorias para as cidades ao longo da ferrovia e carvão vegetal para a Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira, em João Monlevade. O produto era transportado até o pátio do terminal fabricianense por caminhões com enormes gaiolas. O carvão produzido em menor escala por particulares vinha conduzido por tropeiros, que também carregaram capim para a cobertura das primeiras habitações no início da construção da Companhia Siderúrgica Aços Especiais Itabira, Acesita.

Após ser construída, a estação ferroviária Raul Soares, ficou abandonada durante dois anos/Arquivo Revista Caminhos Gerais

Para o pacato povoado do Calado, a inauguração da estação ferroviária foi um evento extraordinário. As cargas e mercadorias que chegavam em lombos de animais ou em canoas eram transportadas agora pela via férrea. Na década de 50, com o aumento populacional causado pela atividade crescente da Acesita, a estação passou a ter função social. O footing noturno era feito em sua proximidade. Numa época em que a elegância e o luxo faziam parte do cotidiano, as pessoas iam recepcionar os passageiros que chegavam, vestindo os melhores trajes – alguns, inclusive, encomendavam roupas novas. Nada que chamasse a atenção, pois os garçons do Bar do Duval, o mais renomado da cidade, usavam gravata borboleta. Chique, não?

Cimento inglês

A tragédia propriamente dita, a demolição da antiga estação, foi decretada quando em meados dos anos 1970 a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) decidiu retirar o traçado da ferrovia dos trechos urbanos mais densamente povoados. Quando a notícia chegou não causou sobressaltos nos comerciantes do Centro de Coronel Fabriciano. O prédio da estação seria entregue à municipalidade, que por sua vez, construiria uma praça em frente ao terminal.

Foi escolhido até o nome do logradouro, Praça Mário Carvalho, justa homenagem a um dos mais importantes ferroviários da CVRD. Até então, a estação não seria derrubada. Aí, segundo depoimento recente de Clodomiro de Jesus, na época vice-prefeito, o engenheiro contratado para elaborar o projeto, concluiu que seria inviável construir a praça sem demolir o prédio.

Segundo relato irônico, mais para a anedota pitoresca e folclórica do que para o boato maldizente, ao ser avisado por um assessor, que a edificação por seu valor histórico deveria ser tombada oficialmente como patrimônio cultural, o então prefeito Mariano Pires Pontes, o Dôca Pires, sentado confortavelmente em sua cadeira no gabinete da prefeitura e sem tirar o cigarro da boca, prontamente respondeu: “Não precisa de lei, não! É só mandar um trator derrubar”.

Obra de expansão do terminal, já denominado Cel. Fabriciano, no final dos anos 1960/Arquivo Revista Caminhos Gerais

Verdade ou maledicência espalhada por adversários maldosos, o fato é que a estação veio mesmo abaixo, sem nenhuma contestação da população, que ao que tudo indica, foi surpreendida com a irreparável demolição.
Certamente, sim; já que a ‘operação demolição’ teve início bem cedo numa manhã de sábado, o fatídico dia 15 de março de 1982, e só foi terminar na tarde do domingo.

As paredes da edificação foram derrubadas por um trator, mas, a sólida plataforma, desprendeu mais esforços. Construída com cimento importado da Inglaterra (naquela época o produto produzido no Brasil era de péssima qualidade), a plataforma, segundo Clodomiro de Jesus, teve que ser dinamitada, quando ficou comprovado, após várias tentativas, que apenas o trabalho do trator não a demoliria.

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Metrô de superfície

A destruição da estação ferroviária de Coronel Fabriciano, localizada em área privilegiada no centro urbano da cidade, há quase 37 anos, ilustra exemplarmente como os bens arquitetônicos históricos nacionais são tratados oficialmente. (Vide Museu Nacional do Rio de Janeiro). Se de pé, a espaçosa edificação poderia abrigar, por exemplo, um atrativo complexo cultural, formado por museu, biblioteca, videoteca, cafeteria. E, claro, a Praça Mário de Carvalho poderia existir.

Na tentativa de reparar o irreparável, nos anos 1990 foi ensaiada uma tentativa de ser construída uma réplica da estação. O projeto não saiu do papel. Outra tentativa frustrada seria aproveitar os trilhos da ferrovia para um metrô de superfície até a Cenibra. O movimento liderado pelos falecidos Dom Lélis Lara e o ex-prefeito de Ipatinga, João Lamego, também não deu em nada, apesar dos esforços de ambos. ( * Colaborou com o Diário do Aço)


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