Entrevista: A morte é a certeza mais incerta, diz psicóloga especialista em luto

A morte no seu significado mais simples seria o passamento, processo irreversível de cessamento das atividades biológicas necessárias à caracterização e manutenção da vida em um sistema outrora classificado como vivo. Outros podem definir este momento como “deixar de existir”. 

O dia 2 de novembro é dedicado às lembranças daqueles que partiram. Por isso, comemora-se o Dia de Finados. Desde o século XI os papas Silvestre II, João XVIII e Leão IX já recomendavam aos cristãos dedicarem um dia por ano a rezar por quem já havia falecido e que não era lembrado. A partir do século XII, o Dia de Finados é celebrado pela Igreja Católica em 2 de novembro, isto porque em 1º de novembro é comemorado o Dia de Todos os Santos – data que celebra todos os que morreram em estado de graça, mas que não tiveram a oportunidade de ser canonizados ou que não são lembrados em orações por ninguém.

No Brasil, a data é lembrada com a visitas a cemitérios e celebrações de missas. Trata-se de um momento de introspecção, de lembrança e respeito por aqueles que já se foram. Não é assim em todas as partes do mundo. No México, o Dia dos Mortos transformou-se numa atração turística devido à enorme festa que se faz, substituindo o tom habitual de lamentações que é atribuído a esta data por animação e alegria. As pessoas saem às ruas com pinturas de caveiras no rosto e em outras partes do corpo, além de decorar suas casas com esqueletos.

A psicóloga Vera Lúcia Dias, especialista em luto, fala sobre a importância de se preparar para o momento da separação definitiva. É importante estar pronto e que todos ao redor também tenham a consciência sobre a hora da partida. 

Jornal da Manhã – A morte é simbolizada pela perda, a separação, é um momento de dor… Mas esta mesma morte pode ser também um sinônimo de celebração?
Vera Lúcia Dias –
Depende da cultura. Algumas culturas tradicionalmente não veem a morte – como a tratamos aqui no Brasil – como algo ruim. Em algumas culturas ela é motivo de festa. Os mexicanos, por exemplo, a maneira como eles comemoram o Dia dos Mortos se tornou patrimônio cultural mundial. Eles realizam festejos que não têm esse caráter sombrio, temoroso, que vivemos aqui. No Brasil, parece que até a natureza fica triste no dia 2 de novembro. Já tive oportunidade de acompanhar no México, onde são três dias de festa, com o mesmo valor cultural que teria aqui o nosso carnaval ou as festas de fim de ano. As pessoas bebem, comem, festejam e se fantasiam. Isso depende da cultura. A morte não é território de uma ciência só; todas as ciências podem falar da morte. 

JM – Os festejos no Dia dos Mortos não acontecem apenas no México… Povos que residem próximo à Cordilheira dos Andes, aqui na América do Sul, também costumam festejar este dia…
VLD –
Essa maneira de comemorar vem antes da colonização espanhola na América. Os incas e os maias já comemoravam de forma diferente, com os crânios dos mortos, que eram exibidos como troféus durante as festividades. Depois, os espanhóis chegaram e tentaram introduzir toda aquela simbologia do cristianismo. E hoje existe uma fusão das duas culturas, da pré-hispânica e também da cultura cristã, trazida pelos espanhóis. Existe essa mescla. 

JM – A senhora conheceu essa experiência mexicana no ano de 2013. Agora, qual a relação do mexicano com a morte na questão individual? Ela também é menos sofrida?
VLD –
Eu não conheço estudo algum sobre esse comportamento de forma individual. Tudo que tenho lido envolve a cultura mexicana de uma forma geral. Recentemente, em uma palestra que realizamos – e sempre fazemos esse trabalho próximo ao Dia de Finados –, um dos componentes do nosso instituto fez uma apresentação sobre as festividades no México. E nós procuramos filmes de curta duração. E encontramos muitos produtos voltados para crianças, falando sobre o Dia dos Mortos. E o conteúdo mostrava que haverá um momento de reencontro. E, no Dia dos Mortos, todos levam comidas e bebidas. E se a criança é educada desde cedo para encarar a morte com naturalidade, isso não será um problema. 

JM – Há uma velha máxima que diz: “Vamos dar jeito na vida, porque a morte é certa”. Na verdade, não se tem certeza da morte, pois nunca sabemos quando ela virá…
VLD –
É a certeza mais incerta, não é? 

JM – Mas quem lida com essa questão da certeza da morte pode ter uma qualidade de vida melhor?
VLD –
Com certeza. Encarar a morte como algo certo nos trará qualidade de vida. Inclusive, esse é um dos objetivos da Tanatologia, que é uma ciência que estuda a morte. Não apenas na perspectiva de um corpo que vai se decompor, mas no sentido de fazer as pessoas refletirem sobre o que as pessoas vão fazer da vida enquanto elas a possuem. Com certeza, a pessoa que tem a consciência de que amanhã pode não mais estar aqui, ela leva a vida de forma mais organizada, ela procura tirar o máximo de bom que a vida pode oferecer. Muitas pessoas levam a morte como uma surpresa, como se isso não fosse existir, nem para elas, nem para seus familiares. E uma analogia que gosto muito é que a morte é como uma viagem para a qual temos que estar com as malas prontas. Nós não temos a passagem com horário e data da partida. 

JM – As pessoas, além de não estarem preparadas, ainda não aceitam algumas situações que a morte impõe. Para elas, primeiro morrem os pais e depois os filhos. Essa seria, em tese, a lógica da vida. Mas não é assim que as coisas acontecem. Há muitas vezes uma inversão nesta que seria a tendência natural. Para os pais que perdem filhos, o luto talvez seja mais complexo. Esse tipo de luto precisa de mais atenção?
VLD –
É uma das experiências mais dolorosas, justamente por causa desse conceito, dessa fantasia que a gente tem de que existe uma ordem para a morte chegar. E essa ordem seria do mais velho para o mais jovem. Mas isso não está escrito em lugar algum. Numa sequência natural, até seria. Mas nem tudo acontece dentro de uma naturalidade. Há jovens com doenças fatais ou que sofrem acidentes fatais. Isso não é natural para ninguém, mas para um jovem é pior ainda. Enterrar um filho não é apenas enterrar um corpo, mas enterrar todos os projetos que os pais e a família tinham para aquele jovem e aquela criança. Existe hoje um movimento mundial para respeitar o luto parental. Publiquei aqui, no Jornal da Manhã, no dia 15 de outubro, um artigo sobre os pais de anjos. São esses pais que perdem os filhos de forma muito precoce. Recentemente, acompanhei o velório de uma criança de apenas um mês de vida. E a família estava desolada. E devemos respeitar muito a dor desses pais. Eles precisam "chorar" o que eles estão sentindo. E sabe um momento em que não se respeita essa dor? É quando alguém se dirige a esse casal e diz: “Não fiquem assim, vocês são jovens, poderão ter outros filhos”. 

JM – Terão outro ou outros filhos, mas jamais aquele filho de volta…
VLD –
Aquele filho continuará existindo no espaço emocional daquela família. Então, por esse bebê que morreu com apenas um mês de vida, a família vai chorar pelo resto da vida.

JM – O luto tem um prazo?
VLD –
O luto nos deixa com tantas perguntas, que escrevi o livro “As perguntas que não querem calar nos nossos lutos de cada dia”. Então, as pessoas ficam muito preocupadas. Será que o meu luto está demorando demais, será que não está demorando demais? Ficar enlutado hoje é diferente de ter ficado enlutado ontem. No passado, as pessoas tinham um tempo definido para o luto. Eram sete dias de tarja preta, as viúvas usavam durante seis meses vestido preto, nos seis meses seguintes usava-se um vestido florido. Havia ainda outros costumes: na primeira semana não se ligava o rádio, já que não havia TV e nem internet naquela época. E, ainda, os relógios eram parados e os espelhos, cobertos. Eram maneiras de exteriorizar o luto. 

JM – Essa materialização ajuda?
VLD –
Os rituais ajudam. Hoje, ao contrário, tudo é muito rápido. Algumas famílias se reúnem logo após o velório, no dia seguinte alguns integrantes já estão trabalhando. É como se tivesse que passar por cima dessa dor, “tratorar”. Mas as pessoas têm o direito de prantear essa dor. É um direito adquirido. Agora, o ser humano é único e cada um tem a sua vivência do luto. A gente estuda padrões, fases, mas cada um vive à sua maneira. Em relação ao luto, tem um autor que eu gosto muito que diz que suspeita daqueles lutos que acabam antes de um ano e dos que demoram mais de dois anos. Hoje, há um consenso segundo o qual o período mais difícil é aquele dos primeiros 13 meses após a morte. É que a pessoa em luto, nesse período, vive todas as datas que têm carga emocional pesada. O aniversário da pessoa que se foi, Dia das Mães, Dia dos Pais, aniversário de casamento, Natal, réveillon, todas as datas em que se está pela primeira vez sem essa pessoa. Em 13 meses se completa esse ciclo. E essas datas têm uma carga emocional muito grande. Em uma missa do sétimo dia, por exemplo, estamos muito esgotados, com muitas lembranças ainda presentes. O primeiro mês pós-morte ainda traz muitas lembranças do dia da perda. Um ano após a morte ainda há lembranças fortes. É mais ou menos assim. Tem uma imagem que eu gosto muito para definir o luto. Todos já viram imagens de eletroencefalograma ou eletrocardiograma. O que acontece é cheio de descidas e subidas. O luto é mais ou menos assim. Em um primeiro momento você está em baixa, sem desejo de comer, de ficar com outras pessoas. Depois, todos os desejos da vida vão retornando com o tempo. De vez em quando uma música, comida, um perfume, algo que te traz uma forte lembrança daquela pessoa, e você volta a ficar em baixa. Mas isso vai espaçando com o tempo. Mas há autores que dizem que o luto não termina nunca. O sofrimento intenso passa, mas a saudade fica. 

JM – E qual a diferença que existe entre saudade e luto?
VLD –
Não dá para estabelecer uma diferença, porque a saudade é um dos sentimentos que são experimentados em um processo de luto. E são muitos os sentimentos. Às vezes vem até mesmo um alívio, quando a pessoa estava muito doente. Às vezes vem culpa, vem saudade, vem raiva. São sentimentos ambivalentes. Por exemplo, uma viúva que fica sozinha com três filhos, em alguns momentos ela conversa com o marido, cobrando por que ele fez isso com ela. 

JM – E se ele a deixou endividada, talvez esse sentimento de raiva seja maior ainda…
VLD –
Ficar viúva e com dívidas, com uma casa sem escritura, ficar sem nenhum amparo financeiro, com toda a certeza são complicadores a mais para se resolver em um processo de luto.

 

Postado originalmente por: JM Online – Uberaba

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