Entrevista: Para advogado, a prisão condenatória só deve ocorrer após todos os recursos

Graças aos avanços tecnológicos, à revelação de escândalos de corrupção e à ampliação da cobertura da imprensa, as atuações do Ministério Público, especialmente na operação Lava-Jato, do então juiz e hoje ministro da Justiça, Sergio Moro, e do Supremo Tribunal Federal (STF) ganharam visibilidade e protagonismo nos anos recentes. Desde o caso mensalão, em 2005, a população brasileira passou a acompanhar as decisões da Suprema Corte e conhecer cada ministro por nome e posicionamento. Em 2019 não está sendo diferente. Especialmente em relação às questões criminais, o ano tem sido de grande agitação em nosso mais alto tribunal.

Um dos temas que causaram muito debate nos últimos tempos envolve a prisão de condenados em segunda instância. Há quem defenda o cumprimento inicial da pena, antes do chamado trânsito em julgado. O tema foi tão badalado que muito se especulou sobre os efeitos que poderiam ocorrer no sistema prisional do país se aceita pelo STF a tese do encarceramento do réu após esgotados todos os recursos. Foram divulgados números segundo os quais pelo menos 180 mil presos seriam libertados imediatamente. Mas, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) rebateu esses dados e informou que o número de beneficiados seria bem menor, inferior a cinco mil.

Advogado criminalista e especialista em Direito Processual, Widson Dantas, em entrevista ao Jornal da Manhã, fala sobre as demandas que estão em discussão na Suprema Corte. Para o professor universitário, as decisões do STF são baseadas em questões técnicas. Muitas vezes essas decisões não agradam a uma parcela da população, mas o Supremo deve ser o guardião da Constituição. E é o texto da Carta Magna que deve prevalecer. Confira a entrevista!

Jornal da Manhã – O Supremo Tribunal Federal concluiu a votação sobre as alegações finais em um processo [por maioria de votos, o plenário do STF decidiu que em ações penais com réus colaboradores e não-colaboradores é direito dos delatados apresentar as alegações finais depois dos réus que firmaram acordo de colaboração]. Com isso, foi alardeado que os condenados por conta de ações da operação Lava-Jato poderiam se beneficiar da decisão do STF, ter as condenações suspensas, resultando no retorno das ações à primeira instância. Essa decisão pode colocar em xeque a Lava-Jato?
Widson Dantas –
 O STF discutiu um tema que pode, sim, influenciar em algumas ações da [operação] Lava-Jato. É um tema polêmico, mas a discussão é estritamente técnica. Precisamos ter muito cuidado ao comentar esse cenário, que envolve anseios da população. A sociedade brasileira não suporta mais tanta corrupção. Agora, essa é uma discussão que envolve questões técnicas. Nem sempre aquilo que desejamos é o que pode acontecer. 

JM – É notória uma campanha contra o STF, fato que causa preocupação. Afinal, quando as nossas instituições são atacadas, como o Executivo, Legislativo e Judiciário, isso resulta em postura totalitária e de pouca ou praticamente nenhuma democracia. Para o senhor, o STF tem cometido tantos erros a ponto de se fazer uma campanha contrária a esse poder?
WD –
 O erro é associado à figura humana. E o STF é composto por 11 ministros, são seres humanos e estão sujeitos ao cometimento do erro. Porém, a Suprema Corte, como guardiã da Constituição, preza pela Carta Magna e, no campo do processo, preza pelo chamado devido processo legal. 

JM – Nem sempre o que diz o texto da Constituição é o que a sociedade espera como resolução de determinadas causas. Aí, talvez, fosse o caso de se mudar a Constituição?
WD –
 Exato. E um ponto importante sobre o que diz a Constituição e os anseios da população: o nosso Estado é um Estado de direito e um Estado democrático. Qualquer pessoa ou instituição está sujeita a pontos de vistas contrários. Isso precisa ser bem aceito. Não se pode levar para o lado da agressão. A opinião contrária deve ser bem aceita. Por exemplo, essa decisão do STF [que em ações penais com réus colaboradores e não-colaboradores é direito dos delatados apresentar as alegações finais depois dos réus que firmaram acordo de colaboração] foi tomada por maioria. Foram sete ministros que votaram a favor dos prazos diferenciados. Aliás, houve um debate no plenário, que por sinal vem se arrastando desde o mês de agosto. 

JM – Parece-nos que a ideia da aplicação do Direito é para solucionar conflitos. E quem deve estar à frente dessas decisões são pessoas que não tiveram nenhum envolvimento no fato em julgamento. Se partimos para o radicalismo e se levar adiante essa ideia de acabar com o STF, vamos retornar à Idade Média, quando cabia aos monarcas decidir sobre o que fazer nos conflitos de interesse. Isso não seria nada bom. Então, imaginamos que o papel do juiz, de um desembargador ou ministro é tomar decisão sem envolvimento emocional com a causa. Por isso, precisamos do Judiciário…
WD –
 O ponto de vista é esse. Claro, o STF acompanha os anseios da sociedade. Não tenha dúvida que o Judiciário acompanha todo esse trabalho de combate à corrupção. Porém, a partir do instante em que surge um processo e ele será apreciado pelo Judiciário e, em última instância, pelo STF, esse julgamento deve ser extremamente técnico. No campo da discussão, eventualmente podem surgir decisões jurídicas, com fundamentos na lei, mas com pano de fundo político. Isso também pode acontecer. 

JM – Ainda em relação ao julgamento no STF, com referência a um processo em que existem o réu e um delator… Esse delator, que também é réu, deu a sua palavra final no processo, então, o réu delator teria o direito de manifestar-se após a palavra final do delator, justamente para contrapor as acusações. A grosso modo, seria isso?
WD – 
O processo penal, que é o procedimento acusatório, previsto no Código de Processo Penal (CPP), deve ser respaldado no texto constitucional. A Constituição é que deve prevalecer. Ainda que a legislação determine um procedimento a ser seguido, que está lá no CPP, não há dúvida que a Constituição deve prevalecer. Um ponto importante… A Constituição diz: “O devido processo legal”. O que isso significa? O direito ao contraditório e à ampla defesa. O processo é formado pelo acusador, que via de regra é o Ministério Público, e pelos réus. Essa marcha processual segue com as teses e antíteses, ou seja, contraditórios e ampla defesa. Chegamos ao final do processo, depois da instrução, após ouvir todas as partes. Ou seja, após oitiva das testemunhas, pela ordem, vêm acusação, testemunhas de defesa, discussões e interrogatório dos acusados, que devem ser ouvidos por último, aí o juiz, por prática ou regra processual, determina os memoriais escritos. A legislação prevê as alegações finais por via oral, em termos práticos isso não ocorre. E o CPP fala que esses memoriais – que são o último ato das partes antes da sentença – devem vir primeiro da acusação, e depois a defesa deve apresentar os memoriais. Está no CPP. Após a apresentação desses memoriais, eles seguem para o juiz sentenciar. 

JM – E quando se trata de uma ação onde consta uma delação premiada?
WD – 
A delação premiada é um instituto recente. Ganhou uma forma mais sólida a partir de 2009, com a Lei 12.850. Então, a delação premiada está prevista nesta lei como uma forma de a polícia e a acusação conseguirem mais provas no processo de apuração de determinado crime. E aí, o que acontece? Imagine um processo com vários réus, entre eles alguns são colaboradores e réus que não colaboraram. 

JM – E tem réus delatores e delatados…
WD – 
Exatamente. E aí, o que acontece? A delação premiada constitui, em síntese, que o réu delator entregue os comparsas por benefício penal. Se o réu passa a entregar os comparsas para obter um prêmio, daí o nome delação premiada, ele passa a produzir uma carga probatória e acusatória. Então, se ele passa a acusar, eu vou à Constituição. E a Carta Magna fala sobre o direito ao contraditório e à ampla defesa. Daí, por maioria de votos, o STF entendeu que, em um processo com delatores e delatados, os delatados, em fase de memoriais, têm que utilizar o último prazo. Decisão com base na Constituição. 

JM – Então, podemos entender que essa decisão do STF não significa invalidação de provas coletadas no processo ou absolvição de quem quer que tenha sido condenado em um processo. Porque o fato foi colocado nesse ponto, como se a Suprema Corte estivesse autorizando uma soltura em massa de pessoas condenadas. O processo vai retroagir à fase de alegações finais…
WD – 
Perfeito. Precisamos deixar claro que por este motivo [o réu apresentar alegação final por último, na fase dos memoriais] ninguém será considerado inocente. Uma vez decretada a nulidade dos memoriais, por conta do prejuízo produzido contra os delatados, o processo terá a sentença anulada e virá uma nova fase de memoriais e, depois, a sentença do juiz. 

JM – Pode mudar a sentença do juiz?
WD –
 Por esse motivo, não acredito. O que pode acontecer é o processo durar um pouco mais. 

JM – Outra questão polêmica em discussão no STF envolve o cumprimento de pena para réus condenados em segunda instância, ou seja, a pena passaria a ser cumprida antes de que todos os recursos fossem julgados. O que diz o texto constitucional sobre essa questão?
WD – 
O raciocínio é o seguinte. Essa é uma questão técnica e temos que ter muita prudência para abordar. É claro que existem os anseios da sociedade. Mas a Constituição Federal, em seu artigo 5º, assegura como direito fundamental que qualquer cidadão só será considerado culpado após o trânsito em julgado de uma sentença penal condenatória. O que é um trânsito em julgado de uma decisão? É a sentença, a decisão penal em que não é mais cabível nenhum recurso. Só assim, qualquer cidadão, e aí não me refiro a nenhum réu específico, estará sujeito ao princípio da culpabilidade, passando a ser considerado culpado. Nesse cenário previsto na Constituição, eu entendo, com o devido respeito a quem pensa diferente, que prisão para cumprimento de pena somente é possível após trânsito em julgado. 

JM – Valeria para os chamados crimes hediondos [considerados de extrema gravidade; em razão disso, recebem um tratamento diferenciado e mais rigoroso do que as demais infrações penais; é considerado crime inafiançável e insuscetível de graça, anistia ou indulto] também?
WD – 
O texto constitucional vale para qualquer um, independentemente da natureza do crime. Existe a possibilidade da prisão cautelar, que é constitucional, e pode ser decretada também uma prisão preventiva de um acusado. E, dependendo da natureza do crime, ele pode ficar preso durante todo o processo, mesmo sem decisão penal condenatória. Agora, a prisão para cumprimento de pena, nos termos constitucionais, sem nenhuma dúvida, somente após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

Postado originalmente por: JM Online – Uberaba

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