Reflexão: a pandemia e o tempo


O Cardeal português, José Tolentino Mendonça,  poeta, teólogo, professor e escritor e responsável pelos arquivos e biblioteca do Vaticano desde o ano passado, após nomeação do Papa Francisco, participou, no último dia 22 de junho,  da série de lives Diálogos on-line de Teologia Pastoral, que a Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), de Belo Horizonte, tem promovido. O cardeal abordou o tema da espiritualidade cristã em tempo de pandemia.

Hábil intelectual, com facilidade no campo da Filosofia e da Teologia, de modo específico na Espiritualidade, explorou a categoria do tempo. Ele recorreu a um dos princípios repetido várias vezes pelo Papa Francisco de que o tempo é superior ao espaço!

  1. Tempo de esvaziamento

O tempo em que vivemos, em pandemia, acuados no isolamento social, é tempo da Kenosis (grego) que significa esvaziamento (o termo foi fundido a partir do hino de Filipenses 2, 6-11. Kénosis é o sair de si sem deixar de ser o “si” mesmo. É um auto-esvaziamento). Tempo de silêncio, um tempo em que, talvez, sintamos uma incerteza muito grande, um tempo de crise em que parece que a vida vem menos. Um tempo precário.

A mesma raiz etimológica aproxima as duas palavras: precare, rezar, em latim, e precarium, o destino daquilo que é frágil. A espiritualidade não se constrói com a força. Jesus ensinou-nos isso com o mistério da sua Páscoa, tudo tem de passar pelo mistério da cruz. E, por isso, este tempo, que parece só de calamidade, é também um tempo de graça do ponto de vista teológico e espiritual. Este é um tempo de maior gratuidade. É um tempo para criar. Não é só a passividade, não é só o não fazer, não é só um tempo para “descriar”; é um tempo propício, oportuno. 

  1. “Tzimtzum” – o recuo de Deus

Consta da tradição judaica, a Cabala (literatura do misticismo judaico), uma atitude atribuída ao ser divino – segundo a qual, para poder criar, Deus teve de dar um passo atrás, teve de se despojar de si mesmo para poder criar. 

O tempo da pandemia nos coloca dentro do nosso “tzimtzum”: darmos um passo atrás para, também, ter uma visão crítica em relação ao modo como habitamos o espaço ou entendemos o tempo. Nem sempre a pura ocupação de espaço nos dá a possibilidade de conhecer a verdade, de viver intensamente o tempo. Poderá ser apenas marcação de território, uma espécie de colonização do território da comunidade, ou do território público. 

O tempo da catástrofe da pandemia nos parece um tempo em que será possível descobrirmos o Deus da ternura, o Deus da misericórdia, o Deus próximo, o Deus comprometido com a pessoa humana, o Deus que está ao lado da vítima, ao lado do que sofre; porque o próprio Deus vive este recuo. 

  1. Tempo de intensificação da relação

O tempo de isolamento social é tempo de muita intensificação da relação. Vamos descobrir na intensificação da relação a forma da presença. Nem sempre a proximidade faz o outro presente. Muitas vezes estamos próximos uns dos outros e, no entanto completamente ausentes; encontramo-nos, nos esbarramos, mas não somos presença. Estamos em comunidade, mas somos ilhas, não arquipélagos. 

  1. Tempo para redescobrir e retrabalhar as histórias de amor 

No século passado grandes obras de literatura, de filosofia, da música, da pintura, da espiritualidade aconteceram em contextos dramáticos, como o que estamos vivendo.

Podemos colecionar uma alta soma de obras estupendas, de histórias de amor impressionantes, de pequenas histórias, os médicos, os enfermeiros, o pessoal técnico, as pessoas dos laboratórios, tantos sacerdotes, tantas comunidades; mas não só: tantos gestos de amor: as pessoas que dizem, nos seus prédios, aos mais idosos, que vão fazer as compras; aqueles que não querem deixar ninguém para trás; todos esses gestos de amor são alguma coisa que está a transformar este tempo numa catedral.

  1. Tempo para sonhos grandes

Podemos pensar: este é um ano para esquecer; este é um ano de vida adiada. Há um grande poeta de língua portuguesa, António Ramos Rosa, que tem um verso maravilhoso: «Não posso adiar o coração para outro século». Este não é um tempo para a pura sobrevivência, este é um tempo para sonhos grandes, para projetos maiores do que nós, é um tempo para dar passos novos, para ensaiar novos caminhos, para sair da caixa, para reinventar o formato, para descobrir novas linguagens. É um tempo para sentir coisas que, possivelmente, até aqui não sentimos.

Para encerrar, o Cardeal falou da descoberta maior de Margareth Mead:

“Um aluno perguntou-lhe qual era o elemento mais antigo de civilização. Pensando que ia falar dos instrumentos de caça ou de pesca, ou então dos artefatos de barro, de cozinha dos povos primeiros, surpreendeu todos, dizendo: para mim, o primeiro elemento de civilização é um fémur partido e restaurado; porque, para isso ter acontecido, quer dizer que uma pessoa não foi deixada sozinha para trás, que alguém ficou ao seu lado, que alguém garantiu naquela hora de vulnerabilidade o tempo necessário para ela se curar”.

Postado originalmente por: Tribuna do Leste – Manhuaçu

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