Casas à beira da linha férrea sofrem rachaduras

Célia Míriam mora há 42 anos no imóvel e mostra que fendas se espalham por todos os cômodos de sua casa (Foto: Felipe Couri)

Se o barulho do trem correndo pelos trilhos já incomoda durante uma eventual aproximação nas passagens de nível, imagina quem convive com essas intervenções sonoras 24 horas por dia? Mas não são os apitos e sonidos das composições que causam os maiores transtornos àqueles que moram às margens da linha férrea. A Tribuna esteve em algumas casas extremamente próximas à malha ferroviária e constatou diversos problemas em alguns pontos dos 22 quilômetros da via que atravessa Juiz de Fora, cortando vários bairros da Zona Sudeste à Norte.

Às vésperas do fim do prazo, marcado para esta sexta-feira (13), para os Municípios encaminharem à Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) as suas prioridades de investimentos como pacote de contrapartidas da renovação antecipada do contrato de concessão com a MRS Logística para uso da linha férrea por mais 30 anos – a partir do fim do atual acordo válido até 2026 -, a reportagem ouviu moradores que afirmam nunca terem recebido qualquer ajuda da concessionária, apesar de sofrerem com constantes trincas, rachaduras e infiltrações em suas residências. Segundo eles, os danos seriam causados pelas trepidações ocasionadas durante as constantes viagens dos trens.

“A gente fica com medo”, desabafa a aposentada Célia Míriam da Silva, 59 anos, moradora de um dos imóveis “colados” na ferrovia, entre a Rua Cantor Orlando Silva e a Avenida Antônio Weitzel, na divisa entre os bairros Jóquei Clube II e Barbosa Lage. Até o banheiro recém-reformado e uma escada reformulada já dão sinais de pouca resistência aos tremores. Há 42 anos no endereço, a moradora afirma não ter como se mudar, sendo obrigada a conviver com as fendas, que se espalham por, praticamente, todos os cômodos. A situação é ainda pior no terraço, praticamente dividido ao meio.

“Já mandamos consertar, mas é muita composição que passa e abre de novo. Tem dia que correm 15, 20 trens. Não tem condições. Fica no máximo três meses arrumado, depois começa a rachar de novo”, relata Célia. Em outro banheiro, até os azulejos sucumbiram e se desprenderam da parede. “Na época da Rede Ferroviária não tinham essas rachaduras que têm hoje. Mas o movimento na ferrovia aumentou muito.” Na divisa do andar superior, é possível ver até a casa vizinha por um verdadeiro buraco aberto na parede. “Já gastei uns R$ 8 mil só arrumando essas coisas. Quando chove, a água vem pelo terraço e vaza lá embaixo. Me falaram que o jeito seria fazer outra laje, mas imagina o prejuízo que vou ter?”

‘Às escuras’

No último mês, a Câmara Municipal e a Assembleia Legislativa realizaram audiências públicas para ouvir reinvindicações diante da renovação do contrato para exploração da malha ferroviária Sudeste, cujos mais de 1.600 quilômetros se estendem pelos estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, dividindo o mapa de Juiz de Fora em dois. Várias secretarias da PJF também foram mobilizadas, mas quem afirma sofrer impacto direto causado pela via férrea teme ficar “às escuras” por mais três décadas. Enquanto vereadores e secretários discutem o que será feito com parte dos R$ 2,2 bilhões em investimentos que Minas Gerais irá receber da MRS, destacando obras para mobilidade urbana, como viadutos e pontes, fendas estão riscando tetos e paredes dos imóveis próximos aos trilhos, colocando famílias inteiras em risco.

“Deveriam pensar mais na gente, porque toda obra aqui estraga. Já não temos condições financeiras, e o dinheiro que sobra está sendo jogado fora com os reparos”, avalia Célia. Ela e o marido, 64, moram no imóvel com uma filha, 32. “No período da chuva, ficamos ainda com mais medo. A Defesa Civil falou, há uns anos, para fazermos uma coluna entre as duas residências, porque a da minha vizinha poderia cair. Mas é uma obra muito cara para a gente. Vamos deixar de comer para arrumar uma coisa que não somos nós que estamos estragando?”

Avó com filha e 4 netos teme perigo

Márcia Aparecida mora com a filha e quatro netos em casa cheia de rachaduras. Num dos quartos, a fenda está na junção do teto com a parede, causando grande temor (Foto: Felipe Couri)

Morando com a filha de 29 anos e quatro netos, com idades entre 6 e 12 anos, a aposentada Márcia Aparecida Vicente, 61, teme pela vida da família. Eles residem em outro imóvel entre a Rua Cantor Orlando Silva e a Avenida Antônio Weitzel. Mas o estado da residência é aparentemente mais crítico. Há 28 anos no endereço, Márcia afirma que as rachaduras estão cada vez piores. “Os trens passam muito rápido, principalmente à noite. A casa chega a ficar tremendo. O barulho também não deixa ninguém dormir. Se os meninos estão assistindo televisão, precisam aumentar o volume.”

O quarto de um dos netos apresenta uma grande fenda na junção do teto com a parede. “Minha filha é quem está dormindo aqui agora, porque fica com medo de acontecer alguma coisa com as crianças. Quando chove, a água desce. Molha tudo e, depois, fica a umidade e o mofo.” Márcia conta ter chamado a Defesa Civil há cerca de quatro anos. “Falaram que teríamos que tomar providências, porque essas rachaduras são perigosas. Mas não temos outro lugar para ir.” Na tentativa de conter a água, a moradora cobriu uma rachadura no terraço com cimento. “Mas não tenho condições de ficar pagando pedreiro toda hora. Já estão cobrando R$ 150 por dia, e temos quatro crianças para criar.”

A poucos metros da casa há uma passarela subutilizada, segundo os moradores. Eles contaram que a MRS só oficializou uma passagem para pedestres sobre os trilhos, a cerca de 300 metros da estrutura, após eles próprios improvisarem uma escada no local. Além disso, a população chegou a se revoltar, fechando a linha férrea com paus, pneus e móveis velhos. “As crianças não conseguiam passar pela passarela para ir à aula. Cadeirantes e pessoas com problema de labirintite também não”, denunciam. “Foi dinheiro jogado fora.”

Para o líder comunitário do Jóquei Clube II Sebastião, Adão dos Santos, 71, este é o momento de fazer as reivindicações. “É muita coisa errada, passarelas tortas e sem função. Sem contar o barulho e os transtornos no trânsito, porque são mais de 20 trens que passam por dia. Ou a gente faz agora uma pressão para que venham fazer o que é de direito ou só daqui a 30 anos.”

Passarela sem iluminação “invade” casa

“Acabaram com a minha privacidade”, reclama Maza Dia, ao apontar passarela construída pela MRS no Bairro Ponte Preta, a poucos metros de sua casa (Foto: Felipe Couri)

“Acabaram com a minha privacidade”, dispara a motofretista Maza Dias, 52 anos, olhando dos fundos da sua casa para a imponente passarela de pedestres construída no Ponte Preta pela MRS, em 2012, cinco anos após ela mudar-se com a família para o imóvel, na Rua Maria Verônica dos Reis. Segundo a mulher, moradores do bairro e também dos vizinhos Santa Bárbara, Miguel Marinho e Ponte Nova conseguiram reunir em um abaixo-assinado cerca de 500 pessoas que lutam pela retirada da estrutura, considerada por elas como um elefante branco.

“Essa passarela virou um museu, porque não passa ninguém. Acabou tornando-se um ponto de drogas.” Enquanto a Tribuna estava no local, dezenas de pessoas que precisavam cruzar a linha férrea, que divide o Ponte Preta em dois, fizeram a travessia por meio de aberturas realizadas nas grades de proteção pelos próprios moradores. Os pedestres alegam gastar poucos segundos para chegarem ao outro lado passando por cima dos trilhos. Assim, preferem ignorar os riscos de uma possível desatenção com a proximidade de um trem do que dispensar quatro minutos para acessar o mesmo destino por meio da estrutura.

“Antes da passarela, havia uma passagem de nível para pedestres e motoristas com cancela. Agora é como se tivessem dividido o bairro ao meio. O progresso tem que vir, mas deixaram essa estrutura a deus dará. Não tem iluminação, e minha filha que volta para casa às 10 horas da noite não tem como passar nessa escuridão. Por isso, fizeram o buraco. Queríamos pelo menos uma passagem organizada por baixo, porque tem muita criança que precisa ir para a escola”, afirma a moradora da Avenida Marginal, Kátia Simone, 50. Ela também diz conviver com rachaduras em sua casa, onde reside há 25 anos.

“Essa empresa está buscando nova concessão para utilizar a malha ferroviária. Mas acho que antes de assinar qualquer papel, deveria ouvir o povo. Fui até a Câmara (nas audiências) e tenho documentação de que a passarela foi um erro muito grande. Um desperdício, porque o dinheiro que gastaram aqui, poderiam ter construído uma creche logo ali atrás ou um posto de saúde para a comunidade”, critica Maza, temendo que as contrapartidas não cheguem até a população.

Trepidação constante

Assim como as moradoras do Jóquei Clube II, ela também sofre com danos estruturais. “Minha casa está toda rachada, porque a trepidação é muito grande. Imagina essa constante vibração daqui a 30 anos? É uma tragédia anunciada.” Só em um muro construído, há menos de dois anos, a moradora afirma ter gasto R$ 17 mil, sendo logo surpreendida pelas trincas. “Os vidros das janelas racham. Os problemas são padrão nas casas que ficam ao longo da malha ferroviária. As rachaduras começam a aparecer nos cantos e vão se estendendo. Se colocassem os trens por fora da cidade seria ótimo. Não ia tirar o tempo da população, que fica parada nas cancelas, e iria evitar grandes acidentes.”

A motofretista chegou a acionar a Justiça. “Pedi os meus direitos, porque invadiram a minha privacidade, e reivindiquei que fechassem a lateral da passarela. Me deram ganho de causa. Porém, dias após a sentença, um fiscal apareceu aqui dizendo que eu havia invadido terreno da União. Mas há 12 anos comprei essa casa com o muro nessas mesmas dimensões.” Segundo ela, uma nova perícia foi marcada para o dia 30.

Demandas repassadas à PJF

O presidente da Comissão de Urbanismo, Transporte, Trânsito, Meio Ambiente e Acessibilidade da Câmara, vereador José Márcio (Garotinho, PV), afirma que as demandas de moradores que sofrem com rachaduras em suas casas estão sendo repassadas à PJF para constar em possível plano de ação de danos. “Vamos contemplar nas nossas sugestões. Existe lei para a faixa de domínio da via férrea, então pode haver discussão para saber se as casas foram construídas depois da linha ou não. Mas de qualquer forma, cabe a solicitação. A Prefeitura, como representante legal do município, é quem vai encaminhar o relatório à ANTT, mas nós passamos as demandas pertinentes que temos recebido, dentre elas essa de mitigação desses danos em razão da proximidade das moradias com a linha férrea.”

Outra questão importante que está sendo levada pelo parlamentar e que impacta diretamente a população é relacionada a enchentes. “A via férrea corta vários córregos, onde há bueiros construídos há décadas, que não dão mais vazão. Isso faz parte da infraestrutura das estradas de ferro, e a MRS tem que dar manutenção.” Como exemplo de bairros que sofrem com o problema, ele citou o Carlos Chagas, que tem estrutura de captação subdimensionada, ocasionando alagamentos na região da Becton Dickinson, além de Benfica, nas imediações da Praça CEU, e no Santa Cruz, todos na Zona Norte. “O local mais crítico é o Mariano Procópio. A água transborda da linha e alaga as casas”, afirma o vereador.

Além das obras de drenagem para evitar enchentes, a população também manifestou desejo no uso das ferrovias para o transporte de passageiros, mas a discussão não avançou, porque a MRS assumiu a ferrovia em 1996 para transporte de carga. A renovação das concessões é uma proposta da União, para que as mesmas empresas renovem os contratos mesmo antes do vencimento, sob o argumento de antecipar os investimentos. A Prefeitura informa que, por meio da Secretaria de Planejamento e Gestão (Seplag), está finalizando os estudos para que as demandas sejam encaminhadas para a ANTT até a próxima sexta, mas não detalhou o pacote de contrapartidas.

MRS diz não haver previsão direta para moradores

Em nota, a MRS esclarece que não pode se manifestar sobre situações específicas de trincas e rachaduras porque alguns dos casos foram judicializados. “Há diversos outros fatores que podem contribuir para esses danos, como método construtivo empregado, materiais utilizados, condições de drenagem, características do solo etc.. A grande maioria das composições que atravessam Juiz de Fora leva vagões vazios, que são mais leves. E, finalmente, além de todos esses fatores, é preciso avaliar, em cada caso, se as residências foram construídas respeitando a faixa não edificante estabelecida pela legislação, que é de 15 metros a partir do eixo da linha, para ambos os lados.”

Diante das justificativas, a concessionária afirma não haver previsão de contrapartida direta para esses moradores. “O processo de renovação (do contrato) e os investimentos dele decorrentes se destinarão a grandes projetos para segurança, redução de conflitos e melhoria de mobilidade urbana (reduzindo a interferência dos trens sobre o trânsito das cidades, como, por exemplo, com a construção de viadutos).”

Apesar da subutilização das passarelas, a MRS pontua que as passagens não oficiais “são extremamente perigosas”. “Abrir esses caminhos é um gesto leviano. Estamos sempre abertos a discutir as necessidades da população, inclusive articulando com o Poder Público, quando necessário, mas condenamos práticas como aberturas na vedação existente, ‘criação’ de passagens ou outras medidas dessa natureza.” A concessionária não aponta possível remoção da passarela do Ponte Preta.

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Postado originalmente por: Tribuna de Minas – Juiz de Fora

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