Cerca de 380 casos de violência doméstica registrados na quarentena

Uma secretária, de 30 anos, sofreu fratura na face, além de diversas lesões pelo corpo, depois de ser agredida, na frente do filho de 6 anos, pelo ex-companheiro e pai da criança. O caso de violência doméstica está sendo apurado pela Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam).

A vítima, que está tendo apoio jurídico da OAB Mulher de Juiz de Fora, denunciou o caso por meio do WhatsApp, novo canal aberto pelo órgão, a fim de receber denúncias e ajudar mulheres vítimas de violência doméstica, durante o período de quarentena, medida adotada pelos governos para evitar a propagação do novo coronavírus.

Dados da Polícia Civil mostram que, ao longo do mês de março, a cidade teve 378 casos de violência doméstica. O número não é maior do que o registrado no mesmo período do ano passado, quando foram 452 notificações, mas deixa as autoridades em alerta, já que muitos registros podem estar deixando de ser realizados durante a pandemia, resultando em uma subnotificação.

No que diz respeito à solicitação de medidas protetivas, dispositivo previsto na Lei Maria da Penha, a Justiça de Juiz de Fora recebeu 140 solicitações, no mesmo período. Essa medida, constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, permite ao juiz determinar ao agressor o afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a vítima.

Depois de levar chutes e socos do ex-companheiro, secretária moradora da Zona Nordeste resolveu denunciar situação

Fraturas no corpo e na alma

Nesta segunda-feira (27), a secretária, moradora do Bairro Filgueiras, na Zona Nordeste, que preferiu não ser identificada, decidiu quebrar o silêncio e o ciclo de agressões do qual era vítima, e denunciar o ex-companheiro, que, no dia anterior, a violentou com diversos socos e chutes. Ela ainda foi jogada no chão, o que lhe ocasionou lesões no olho esquerdo, na boca, no joelho direito e no pé esquerdo. Toda a agressão foi cometida na frente do filho do ex-casal, um menino de 6 anos, que foi encaminhado para atendimento psicológico.

De acordo com o boletim de ocorrência, registrado pela vítima, no domingo (26), na ocasião em que o ex-companheiro, um caminhoneiro de 29 anos, foi encontrá-la para deixar o filho que estava na companhia dele, ambos entraram em discussão. O motivo para o atrito seria a discordância de horário de visita. Todavia, a discussão terminou em vias de fato. Depois de agredir a ex-companheira, o homem fugiu. A vítima acionou a Polícia Militar, que realizou buscas a fim de encontrá-lo, mas não houve êxito.

“Foi um ato de covardia dele, pois, na hora, não tinha ninguém perto. Alguns conhecidos apareceram e vieram ajudar, mas ele entrou no carro e fugiu. Ele me jogou no chão e bateu com a minha cabeça várias vezes no muro e no chão e me chutou”, contou a vítima, que disse ainda, que além da fratura na região dos olhos, há a suspeita de que sua mandíbula esteja fraturada.

Ela relatou que está machucada em outras partes e que sente muita dor no corpo e na alma. “Mas, o que me dói mesmo é ver que ele fez tudo o que fez na frente do filho, porque uma criança de 6 anos acha que o pai é um herói. Esse homem que meu filho mais imaginava que iria defender ele e sua mãe foi quem me machucou.”

Denúncia

A presidente da OAB Mulher de Juiz de Fora, Cátia Moreira, contou que o órgão foi procurado pela vítima, na segunda-feira, por meio do WhatsApp, relatando que havia sido violentada pelo ex-companheiro. “Neste período de quarentena, o Núcleo de Atendimento da OAB Mulher permaneceu atendendo por meio desse novo canal. Fizemos o atendimento dela pelo aplicativo. Ela nos enviou fotos, mostrando a situação na qual se encontrava, e o núcleo se encarregou do caso.”

Depois do recebimento da denúncia, o núcleo fez o agendamento na Delegacia de Mulheres e fez o acompanhamento da vítima, na manhã desta terça (27), até a unidade, onde ela foi ouvida pela delegada. “O exame de corpo de delito da vítima foi dispensado e será na modalidade de amostragem, uma vez que temos todas as provas e o prontuário médico dela atestam as lesões graves que ela sofreu”, ressaltou.

Segundo Cátia, o Núcleo de Atendimento da OAB Mulher tomou todas as providências jurídicas cabíveis, inclusive a solicitação de medida protetiva para a secretária junto à Justiça. “Diante da gravidade do que ela e o filho vinham vivenciando, fizemos o encaminhamento deles para o psicólogo do núcleo que irá atendê-los por vídeoconferência. A criança assistiu à agressão e ficou muito abalada e está com o temperamento agressivo, querendo revidar o que pai fez com a mãe”, afirmou Cátia, acrescentando que, depois do caso envolvendo a secretária, a OAB entrou na Justiça com a solicitação de medidas protetivas para mais duas vítima, nesta semana.

Atenção redobrada

A presidente da OAB Mulher destaca que os números da violência doméstica, neste período de quarentena, merecem ser olhados com atenção redobrada, porque cresce a cada dia. “Mas temos que ressaltar que essa violência não foi a quarentena que aumentou. O que vem ocorrendo é que os companheiros, que já eram mais alterados, estão experimentando ficar mais em casa. Isso colabora para a violência, sem falar que esses casos sempre ficaram mais escondidos e, atualmente, as mulheres estão trazendo isso mais à tona. O grave é que as agressões têm sido mais fortes, como temos visto em âmbito nacional, inclusive com casos de feminicídios tentados ou consumados, o que assusta muito”, salientou Cátia, observando que, por essa razão, é preciso ficar em alerta e conscientizar para a importância da denúncia, que sempre é importante ao longo do ano, mas ganha mais peso em tempos de quarentena e de crise financeira.

Total ainda será contabilizado

Cátia pontuou que, em relação ao crescimento dos casos na cidade, ainda não é possível atestá-lo, já que o serviço de atendimento pelo WhatsApp é novo. “É preciso ainda mensurar o total de ocorrências recebidas pela Delegacia de Mulheres e pela Polícia Militar, para que possamos ter uma estatística.”

O acesso das vítimas ao atendimento da OAB pelo WhatsApp pode ser feito por meio do número (32) 98410-6355, que funciona no mesmo horário de atendimento do núcleo, de meio-dia às 18h, de segunda a sexta. Os familiares de vítimas também podem entrar em contato para saber como ajudar diante da violência doméstica.

A Tribuna, por dois dias, tentou contato com a delegada Bianca Mondaini, que está à frente do caso de violência contra a secretária, na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam). As tentativas foram feitas por meio da assessoria de comunicação, ligação telefônica e WhatsApp, mas não houve retorno.

Minas tem queda nos casos

Ao contrário do que aconteceu em diversos países durante o período de isolamento social, em que houve crescimento de denúncias, Minas Gerais apresentou redução nos registros. Comparando-se os dados de março de 2019 com março deste ano, o estado apresentou redução de cerca de 13%, conforme da Polícia Civil. Em Belo Horizonte, a redução alcançou a taxa de mais de 23% quando comparada aos dados de março de 2019 e março de 2020.

Em 8 de abril, quando os dados estaduais foram divulgados, a chefe da Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher da capital, Isabella Franca, afirmou que ainda era cedo para uma análise mais aprofundada. “Precisamos ficar atentos à evolução desses números, pois essa redução pode ser tanto uma real diminuição de fatos de violência doméstica, como pode ser a diminuição apenas do registro, e que, após o isolamento, as mulheres decidam denunciar os fatos ocorridos durante a pandemia.”

A chefe da Divisão Especializada de Investigação, Orientação e Proteção à Criança e ao Adolescente (Dopcad) acrescentou que, diante dessas reduções de registros, é imprescindível que as pessoas saibam como podem denunciar, tanto a violência contra as mulheres como também a violência contra crianças e adolescentes. “Por isso, a Polícia Civil repete incansavelmente: nós não vamos parar, não podemos parar. A sociedade precisa que a polícia investigativa esteja alerta e pronta para promover a Justiça”, alertou.

Canais de denúncia

De acordo com a Polícia Civil, desde o início da pandemia da Covid-19, diversas normas e regulamentos orientam para a prevenção e cuidados individuais e coletivos. Para atender às recomendações internacionais, inclusive, o Conselho da Polícia Civil definiu que suas unidades manteriam o funcionamento normal e que os atendimentos seriam feitos, nos casos não urgentes, com agendamento de horário.

Assim, foram disponibilizados telefones e e-mails para que a população possa contatar a Polícia Civil, fazer denúncias, pedir informações e orientações e agendar atendimentos, evitando, assim, que haja aglomeração na sala de espera das delegacias em todo o estado.
Estão disponíveis para receber denúncias o Ligue 180, para casos de violência contra a mulher; o Disque 100, que pode ser acionado nos casos que envolvem crianças e adolescentes; além do 181 para denúncias anônimas; 197 da Polícia Civil; e o 190 da Polícia Militar.

Convivência perigosa

Medidas restritivas seguidas em todo o mundo para combater a Covid-19 têm auxiliado no desafio de reduzir a propagação da pandemia. Todavia, por outro lado, intensificaram o risco de violência doméstica contra as mulheres. Muitas delas passaram a conviver 24 horas por dia com potenciais agressores.

A defensora pública e coordenadora local do Núcleo de Defesa da Mulher (Nudem) da Defensoria Pública, Lenora Bustamante de Luna Dias, observou que, na quarentena, as famílias estão isoladas em casa, aumentando os conflitos que já existiam e surgindo outros decorrentes da pandemia, como o aumento do desemprego, a redução da renda familiar e a alteração abrupta da rotina de todos que compõe o núcleo familiar. “Também há a indicação de aumento de consumo de álcool e drogas, o que é um facilitador da violência doméstica”, pontuou.

Análise sobre os perfis das mulheres vítimas de violência doméstica e familiar indica que, aproximadamente, 34% dos casos envolvem companheiros e 32%, ex-companheiros. É o que mostra o Diagnóstico de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, divulgado pela Polícia Civil em setembro do ano passado. “A segurança da mulher e de seus filhos tem que vir em primeiro lugar e para cada caso uma solução pode ser indicada. Sendo um companheiro já agressivo antes da pandemia, pode solicitar o auxílio de vizinhos, para que acionem a polícia em caso de necessidade. Podem também contar com a ajuda de parentes para, se for o caso, a acolherem neste período”, orienta a defensora, acrescentando que a Defensoria Pública conta com atendimento remoto para urgências: (31) 98299-0391 (também whatsApp).

Juiz de Fora tem histórico de alto índice de violência doméstica. Entre 2013 e 2018, por exemplo, a Casa da Mulher recebeu 11.489 denúncias. Para Lenora Bustamante, a denúncia em muitos casos tem caráter pedagógico. “O próprio agressor não tem noção da sua conduta criminosa ou acredita que sempre ficará impune. Denunciar o agressor é um dos primeiros passos da mulher que está tentando romper com o ciclo da violência doméstica”, concluiu a defensora.

Postado originalmente por: Tribuna de Minas – Juiz de Fora

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