Com o que sonha quem não deve sonhar?

Valéria Barcellos interpreta Jezebel, uma travesti que se torna mãe do filho de uma amiga, levantando a questão do desejo de pessoas trans pela maternidade (Foto: Luciana Zacarias)

Às vezes, até mesmo secar aquela gota de suor e reclamar do calor que sufoca pode ser um privilégio. Quem aponta isso é Valéria Barcellos, atriz gaúcha, da pequena Santo Angelo, radicada em Porto Alegre, onde construiu sua carreira como cantora. “Temos problemas iguais aos de uma pessoa não-trans. A gente tem que pagar conta, chega ao final do mês e faz conta, também. Costumo dizer que um dos sonhos de nós, pessoas trans, é poder ter problemas como os de todo mundo. Eu quero reclamar que o pão está caro, que está calor, que estou com fome, que o cabeleireiro cortou meu cabelo muito curto. Estamos cansadas de ter que falar em tom de reclamação sobre nossas realidades. As pessoas não conhecem e nem querem conhecer. Elas têm medo de se aproximar. E o medo junto ao preconceito gera cidadãos avessos às nossas realidades. Queremos ter problemas comuns. Estamos cansadas de falar de gênero e sexualidade como se fosse problema”, lamenta a artista de 39 anos, intérprete de Jezebel, uma travesti que se torna mãe do filho de uma amiga. Às voltas com os cuidados com a criança abandonada pela genitora, Jezebel narra os sonhos de encontrar um parceiro e as angustiadas memórias de uma vida marcada pela violência. Em “Entrega para Jezebel”, espetáculo que chega a Juiz de Fora nesta quarta, às 19h, no Centro Cultural Bernardo Mascarenhas (CCBM), na programação da Semana Rainbow da UFJF, Valéria encena o que é realidade para incontáveis Jezebéis pelo país.

“O tema é minha vida. Sou uma mulher da idade da Jezebel, às vésperas de completar 40 anos. Os temas me atravessam. Também sou uma mulher trans que sofreu violência doméstica, que quer ser mãe, também tive problemas na família, na infância”, afirma a atriz, marcada por um período escolar que, segundo ela, privilegiou uma matéria aprendida por todos, todos os dias: a exclusão. “Nós, quando crianças trans, somos excluídas todos os dias.” Companheira constante, a violência nunca saiu de cena. “Temos essa verdade muito latente em nossas cabeças e nossos corpos”, diz ela, apontando para certa institucionalização da violência, como a expressa pela operação Tarântula, que durante anos 1980 exercitou uma traumática caça às travestis e transexuais pelas ruas de São Paulo. “O que mudou foi a forma como isso é feito hoje e a falta de vergonha. Muitas pessoas se orgulham de dizer que bateram em mulheres trans na rua. Um caso desse é o de Dandara”, lamenta, referindo-se à mulher apedrejada e morta a tiros no Ceará em 15 de fevereiro de 2017.

Jezebel, personagem criada pelo dramaturgo e escritor piauiense Roberto Muniz Dias, relata dores, mas expande seu universo ao abordar uma vida de projetos e trivialidades. “Não existe só a violência. Não apago esse problema nem douro a pílula. Ele existe sim, mas as pessoas precisam entender que temos mais a mostrar e a dizer”, assinala a protagonista, criadora que, como a criatura, também sonha com a maternidade. “É um direito natural poder gerar filhos, ou adotar. As pessoas ficam muito surpresas, como se esse amor não fosse nosso direito, como se não pudéssemos fazer isso. Nossos corpos trans são robotizados, servem para o sexo e somente para isso. Nos tiram o direito de amor, seja qual amor for, pelo desejo físico ou pelo laço afetivo e familiar. Quero muito ser mãe. E percebi o quão etéreo é esse assunto para as pessoas. Para mim transexualidade e maternidade são assuntos muito próximos.”

‘Não se pode voltar para um lugar de onde nunca se saiu’

Travesti pode ser mãe? Para o diretor Rodolfo Lima, que também assina a produção geral da montagem, a maternidade é o ponto nevrálgico do texto, cujo embate maior é o retorno da amiga para buscar o filho. “Meu lugar foi mais o da escuta. Interferi esteticamente, mas estava muito mais preocupado em absorver o universo delas do que de contestá-lo”, diz Rodolfo. “A minha dificuldade morou em fazer com que as atrizes se conectassem com um lugar sem passar pelo filtro do pessoal. Elas deveriam interpretar as próprias dores. Eu queria que elas deixassem o depoimento pessoal e imprimissem algo de diferente”, explica o diretor, reconhecido pelos potentes trabalhos “Bicha oca” e “Réquiem para um rapaz triste”, que trouxe na Semana Rainbow da UFJF de 2018 e também na atual edição. “É minha primeira direção grande. Imprimi coisas do meu repertório. Já me perguntaram se o trabalho havia sido negado. Antes de estar pronto, tentei acessos e não obtive nenhum retorno. Depois de ele ficar pronto, teve uma boa adesão. Era para fazermos 20 apresentações e vamos terminar esse final de semana tendo feito 36 ou 37”, celebra Rodolfo, que teve o projeto aprovado pelo extinto ProAc LGBT, do governo estadual de São Paulo.

Foto: Luciana Zacarias

Os elogios a “Entrega para Jezebel” dão conta de uma honestidade que escorre pelo palco. Desde o primeiro instante Rodolfo diz ter perseguido a verdade nas bocas de um elenco – além de Valéria, integram o elenco a atriz Clodd Dias, também trans, e o ator Daniel Sapiência – que lhe mostrou a urgência da visibilidade e do respeito. “Como homem, branco, cisgênero, gay, acho que a oportunidade que tive de conviver com elas diariamente fez com que eu entendesse a importância da normalização. Para mim era tão comum vê-las como mulheres, porque estavam institucionalizadas no gênero feminino, mas confesso que, quando estou com elas, é visível como as pessoas as percebem de forma diferente. De fora, com um olhar já trabalhado sobre isso, percebo o quanto é difícil lidar com a presença delas, como a presença delas desestabiliza o ambiente, por mais sutil que seja”, lamenta o diretor. “Acho que elas ainda são alvo de um estigma bastante violento, por causa da questão do gênero, por causa da religiosidade xiita que temos e não permite que muitos entendam a singularidade. Elas vivem à sombra desse estigma. E se colocar a questão racial, isso triplica. Existem dados que apontam que o índice de mulheres trans negras assassinadas no Brasil é muito maior do que o de trans brancas”, acrescenta.

Para Valéria a realidade não mudou muito da de tempos atrás. “Digo que não se pode voltar para um lugar de onde nunca se saiu. As pessoas falam muito de retrocessos na esfera econômica, política e de gênero, como se tivesse mudado muita coisa. É bem verdade que tivemos muitas conquistas, como a retificação do nome na certidão de nascimento e da adoção do nome social, mas esse universo não é tão diferente. O que falta é justamente a aproximação. O que acontece de mais louco é a falta de empatia fora da tela do computador”, comenta a atriz e cantora, que participa do projeto “MPB Trans”, no qual artistas expõem suas realidades através da música. Mostrando a faceta cantora, Valéria, inclusive, faz um pocket show no Garten, às 21h, logo após a peça. “A Elisa Lucinda diz que as pessoas pretas têm corpos parlamentares. As pessoas trans têm ainda mais. Ela quer dizer que nossos corpos já têm uma leitura pré-estabelecida”, defende Valéria. “O lugar da pessoa trans é onde ela quiser. Esse é um direito assegurado pela constituição.”

ENTREGA PARA JEZEBEL
Nesta quarta (14), às 19h, e nesta quinta (15), às 20h, no Centro Cultural Bernardo Mascarenhas (Avenida Getúlio Vargas 700 – Centro). Entrada franca.

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Postado originalmente por: Tribuna de Minas – Juiz de Fora

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