Concentração de ambulantes irregulares chama a atenção em JF

Entre problemas decorrentes do uso irregular do espaço está o comprometimento da mobilidade, já que, em alguns casos, os produtos ficam dispostos em locais de tráfego de pedestres (Foto: Fernando Priamo)

Uma volta rápida pelo Centro da cidade é o bastante para verificar o aumento visível da presença de vendedores ambulantes em situação irregular. Bancadas improvisadas com papelão, caixotes e telas são posicionadas em calçadas e até em partes de algumas vias. Sobre elas, vários tipos de mercadoria: frutas, meias, CDs, eletrônicos, chinelos, óculos, enfeites para unhas, brinquedos, sombrinhas, entre muitos outros artigos, de naturezas diversas. A situação é parte de um contexto complexo, que envolve, entre outros atores, a conjuntura econômica, a falta de políticas públicas voltadas para a educação e para o trabalho. Além da desorganização do espaço urbano, que não está restrita a Juiz de Fora, sendo verificada em maior ou menor grau em muitas cidades por todo o país.

Nesse cenário, o primeiro fator em evidência é a urgência de garantir a independência financeira para esses trabalhadores. Embora lide com o comércio de frutas e legumes há mais de 20 anos, o vendedor ambulante Jorge Eduardo, 43 anos, conta que há algum tempo precisou começar a fazer as vendas nas ruas.

“O que me leva a esse ponto é a falta de oportunidades.
Você vai para um lado, não estão precisando (de trabalhadores).
Vai para o outro, não estão precisando também.
No fim de mês temos as contas para pagar.
O único meio que temos no momento é
o trabalho informal nas ruas”, relata.

O desemprego também fez Antônio Carlos Elias, 54, buscar o sustento trabalhando nas ruas. “Trabalhava em uma firma. Saí e entrei em outra, nessa, eu fui mandado embora rápido. Não consegui nada e tive que vir para a rua, fazer qualquer coisa para sobreviver.” Segundo ele, são três anos trabalhando dessa forma. “Venho todos os dias e não tem nada certo. Dependemos muito dos outros, da situação financeira das pessoas. Se elas têm dinheiro, compram e a gente ganha. Assim vamos nos virando”, diz Antônio. Ele aponta que a situação ideal seria ter a carteira de trabalho assinada. “Moro sozinho. Por enquanto, estou conseguindo levar, mas não é certo, principalmente quando os fiscais ficam em cima. Perdemos a mercadoria, não tem como trabalhar sossegado. No momento está quebrando o galho, mas não é seguro.”

Entre produtos vendidos na região central estão frutas, eletrônicos e até óculos; barracas improvisadas são feitas de papelão, caixotes e telas (Foto: Fernando Priamo)

Regulares
Para os ambulantes regulares, a situação também é difícil. Eles entendem a presença dos irregulares, porque, no passado, também precisaram lutar para conseguir legitimar o seu espaço de trabalho. Mas enxergam situações que vão além da ocupação desses trabalhadores. “O que mais incomoda hoje, não é tanto ter irregulares, por mais que a cidade esteja um caos. Há entre os regulares aqueles que alugam seus pontos. Virou monopólio, há pessoas com dois, três pontos alugados. Nós mal conseguimos pagar os nossos impostos, enquanto eles fazem isso e ainda vendem os mesmos produtos que nós”, conta um dos camelôs ouvidos pela reportagem e que terá o nome preservado.

O camelô Adilson Inácio da Silva acredita que falta fiscalização e um olhar mais direcionado para essas questões, com a busca pelo conhecimento desses problemas. “Não temos nada contra os irregulares, já estivemos no lugar deles. Essas pessoas não podem ser reprimidas. Mas algo precisa ser feito por essas outras questões que não recebem a atenção que merecem. Nós entendemos a situação da fiscalização, precisamos que eles atuem nas ruas.”

Ocupação do Centro
Durante uma tarde de observação, percorrendo o Centro à pé, a equipe da Tribuna contou um total de 123 ambulantes distribuídos pelas vias, excetuando barracas padronizadas. A reportagem percorreu as avenidas Getúlio Vargas (da Rua São Sebastião até a Rua Halfeld) e Rio Branco (da Rua Floriano Peixoto até a Rua Bráz Bernardino), e as ruas Halfeld, Marechal Deodoro, Santa Rita e São João Nepomuceno, todas no espaço compreendido entre as avenidas Getúlio Vargas e Rio Branco. Em outros pontos dessas vias, e também em outros corredores de tráfego da cidade, são vistos vendedores de outros artigos, como panos de chão, água de coco, balas, vegetais, bandeiras de times de futebol, água mineral, biscoitos, entre outros. Em outra contagem, feita pela Tribuna há dois anos, havia 87 ambulantes irregulares no Centro nesta mesma área.

A contagem, embora contribua para visualizar o que se vê nas ruas, é insuficiente para dar conta de toda a realidade, já que não há números oficiais que dimensionem o contingente de trabalhadores ambulantes irregulares em Juiz de Fora. Alguns indicadores, no entanto, ajudam a entender melhor as circunstâncias. Como não foram emitidas novas licenças de 2014 até agora, o número de pedidos acumulado na Secretaria de Meio Ambiente e Ordenamento Urbano (Semaur) chega a quatro mil. Ainda de acordo com a pasta, há 205 ambulantes, 32 trailers (de sanduíches) e 13 veículos (carrinhos de cachorro-quente) em situação regular. Há também alguns ambulantes que circulam com licenças provisórias, emitidas antes de 2014. Alguns desses, naquela época, pediram a regularização. Esses somam cerca de 130 trabalhadores.

‘Não nos parece razoável tratar a situação apenas com o olhar da repressão’

A gerente do Departamento de Fiscalização Ambiental e Urbana Graciela Marques considera grande o desafio de lidar com a realidade dos irregulares, já que passa pelo empenho de vários setores, como planejamento, desenvolvimento econômico e social. “Não nos parece razoável tratar a situação apenas com o olhar da repressão, seria improdutivo e não seria condizente com os anseios da população, de modo geral. Contudo, também não podemos deixar de lembrar a necessidade de fazer cumprir a legislação e garantir outros direitos importantes.”

Para começar o trabalho, Graciela aponta que é preciso identificar os espaços públicos atrativos para a atividade e compatibilizar com a necessidade de conferir à população mobilidade e segurança. Além disso, ela também considera que o comércio formal não pode ser deixado de lado. “A Prefeitura vem estudando como tratar o problema e deve apresentar, brevemente, uma proposta de legislação para o segmento, de forma a reordená-lo (novo marco legal). A fiscalização, neste processo, pode contribuir para compreensão da identificação dos espaços públicos e a forma de ocupação, pois vivencia o que acontece na rotina da cidade.”

Mesmo respondendo pelos ambulantes legalizados, o presidente da Associação de Apoio aos Vendedores Ambulantes e Artesãos de JF, Cláudio Souza de Menezes, diz que não pode virar as costas para os problemas dos irregulares. “Eles não deixam de ser trabalhadores.

Há muitos pais de família jogando pano no chão
para vender o que podem. Não somos contra eles.
Eles não estão ali porque querem, mas precisam levar o
sustento para os seus filhos e netos.
Que se faça a licitação, mas que não ocorra represália,
nem repressão para ninguém.”

Outro ponto destacado pelo presidente da Associação é a responsabilidade sobre a ocupação do solo. “Sempre se joga esse problema na conta do camelô e do irregular. No nosso caso, somos legalizados para estar ali. Mas quando se fala em urbanização, também temos que lembrar que na maioria das ruas, o que mais tem é carga e descarga e estacionamento rotativo. O camelô não deve ser responsabilizado sozinho.”

Cláudio exemplifica a desordem com uma situação particular. Ele protocolou um pedido de transferência da barraca dele, porque no mesmo espaço indicado para que ele possa exercer sua atividade houve o licenciamento para o rotativo. “Até agora não apresentaram uma solução. Hoje, não consigo trabalhar, porque há uma vaga no meu ponto”, afirma Cláudio.

Cenário nacional
O secretário de Desenvolvimento Econômico, Turismo e Agropecuária (Sedeta), Rômulo Veiga, alerta para a necessidade de entender o problema considerando todas as suas implicações, da geração de empregos à ocupação do espaço urbano. “Com 12% de taxa de desemprego nacional e cerca de 7,5% em Juiz de Fora, é difícil e até indelicado, que se cobre posturas diferentes desses trabalhadores, uma vez que o Estado falhou em todas as outras atuações necessárias para garantir os seus direitos básicos. Existe uma necessidade mínima de trabalho.”

Para Rômulo, trata-se de uma realidade a ser encarada, pois faltaram políticas públicas voltadas ao setor nos últimos 30 anos. A conjuntura fica ainda mais apertada, conforme o secretário, à medida que crescem os serviços de automação, que vão diminuindo o número de postos de trabalho. “Esse não é um problema de fácil solução e, no Brasil, é ainda mais difícil. Há países que passam por essas situações com a população tendo renda mínima e sem emprego. Ou seja, você garante a receita, independente do cidadão ser segurado ou não pela previdência”, diz Rômulo. O problema, segundo ele, se localiza em um momento em que há o maior contingente populacional no Brasil e a menor capacidade de oferecer empregos, tendo em vista o crescimento da lógica da automação, com a ideia de redução de custos, que gera diminuição de postos de trabalho nas cadeias de produção.

Flagrante feito pela Tribuna mostra carrinho de mão sendo usado como suporte para artigos à venda, como meias e até frutas (Foto: Fernando Priamo)

Prefeitura defende aperfeiçoar lei

A Lei 8.120 regulamenta o exercício do comércio ambulante em Juiz de Fora. Ela completa, em 2020, 28 anos de existência. Em seu texto, o dispositivo diz que devem ser concedidas licenças mediante a aprovação de uma comissão, que deveria ser renovada ao final de cada ano. Para o presidente da Associação de Apoio aos Vendedores Ambulantes e Artesãos de JF, Cláudio Souza de Menezes, para início de conversa, é preciso cumprir efetivamente o que diz a Lei.

“É um problema social sério. Temos a lei que não é cumprida e, de uns anos para cá, piorou muito. Nós temos ideias para a solução do problema, queremos sentar e conversar, mas a Prefeitura quer fazer uma nova lei para tramitar na Câmara. Já temos a lei, não tem justificativa criar outra”, avalia Cláudio, apontando algumas questões que deixaram de ser acompanhadas ao longo do tempo. “Há uma série de problemas que atingem os vendedores ambulantes cadastrados. Há muita coisa errada. Denunciamos pontos que são subalugados, que Prefeitura tem consciência, mas ainda não tomou atitude. Pagamos uma taxa mensal para trabalhar enquanto vemos tudo isso acontecer “, afirma. Procurada pela Tribuna, a Semaur orienta que, nesses casos, as denúncias devem ser encaminhadas para a fiscalização, pelo telefone: 3690-7291.

Experiências de sucesso
Nos últimos anos, a Prefeitura iniciou e interrompeu estudos sobre a elaboração de uma licitação para regulamentar e conceder novos alvarás para os vendedores. Em julho de 2019, por exemplo, o assunto chegou a ser discutido em Audiência Pública da Câmara Municipal, quando foram convidados diversos atores para tratar de questões relativas ao comércio ambulante nas ruas. Embora as discussões persistam, o impasse segue em aberto.

Na avaliação do secretário de Desenvolvimento Econômico, Turismo e Agropecuária (Sedeta), Rômulo Veiga, é preciso atualizar o regramento para que a Prefeitura tenha condição de distribuir os ambulantes pela cidade. “Olhamos para exemplos como o de Santa Catarina, que tipificou a atividade dos ambulantes e criou uma regularização para cada um. Criaram pontos de paradas para carrinhos e outorga mínima pelo uso do espaço e, assim, a pessoa pode pagar pelo dia que usar.”

O desafio, no entanto, de acordo com Rômulo, será construir o diálogo, para que o poder público e os trabalhadores consigam pensar a melhor forma de seguir juntos. O secretário exemplifica o que pode ser feito a partir da experiência com as feiras livres. De acordo com ele, estabelecer contato com esses trabalhadores também foi difícil, porém, sem um regramento, eles ficavam vulneráveis. “Levamos um ano só para conseguir estabelecer a conversa, de tão ruidoso e atritado que era o contato. Agora estamos caminhando. Da mesma forma deve acontecer com os ambulantes. Esse é um trabalho que a Prefeitura precisa fazer, e vamos mostrar que é necessário.”

Rômulo também pontua que, além da atração de empresas e indústrias, para a ativação do comércio e da indústria de transformação, há outros projetos estruturados para dar mais opções aos trabalhadores. “Seja na agricultura familiar, na produção de alimentos, compra pública, ou produção de culturas para a produção do agronegócio, como a produção de biocombustível, essa reversão da migração dos centros urbanos também é um caminho. Estimulando que o campo seja reabitado de maneira saudável, com renda, com dignidade.” Há ainda iniciativas que promovem o empreendedorismo de base comunitária. Essas frentes contam com parcerias com Universidades e entidades como o Sebrae.

Ambulantes e a informalidade: parte do todo

O mercado de trabalho brasileiro é fortemente marcado pela heterogeneidade. Toda a conjuntura de dificuldade não é exclusividade dos trabalhadores ambulantes. Na verdade, segundo a professora do Instituto de Ciências Humanas da UFJF, Ana Claudia Moreira Cardoso, essa realidade não é isolada, representa uma dimensão dentro do todo, que também inclui o aumento nos números de trabalhadores por conta própria, terceirizados, de pessoas que trabalham em casa, dos contratos intermitentes, entre outras modalidades.

“De 2017 para 2019, houve aumento de cerca de 38% das terceirizações, por exemplo. A cada seis vagas que são criadas, uma é de contrato intermitente. Foram criadas 101 mil vagas de trabalho para esse tipo, que já são aproximadamente 15% do total. Ao mesmo tempo, há um aumento de mais de 8% no número de trabalhadores sem carteira assinada e redução de 1,1% entre os que têm carteira assinada. Desse modo, sem terceirizados e intermitentes, o resultado teria sido muito pior.”

Os dados do último trimestre de 2019 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), pesquisa feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostram que houve uma diminuição da taxa de desocupação de seis pontos percentuais. De 11,6% em outubro, novembro e dezembro de 2018, para 11% no mesmo período de 2019. Já a taxa média anual reduziu de 12,3% em 2018 para 11,9% em 2019. No entanto, a professora adverte que mesmo com um resultado que, aparentemente, seria positivo, a dificuldade em oferecer empregos de qualidade continua.

A taxa média anual composta de subutilização da força de trabalho (que leva em conta o percentual de pessoas desocupadas, subocupadas por insuficiência de horas trabalhadas e na força de trabalho potencial em relação à força de trabalho ampliada) diminuiu pouco, de 24,3% em 2018, para 24,2% em 2019. O total de desalentados no 4º trimestre de 2019 chegou a 4,6 milhões de pessoas, cerca de 4,2%, ficando estável na comparação.

Ganhos insuficientes
Outro importante fator que precisa ser considerado, na avaliação da professora Ana Claudia Moreira Cardoso, é sobre a renda dessas pessoas. Partindo de um núcleo familiar com quatro pessoas e até três adultos, imaginando que nesse grupo há um terceirizado e um intermitente, para a professora, é possível afirmar que a renda é insuficiente. “Faz com que o terceiro adulto vá procurar o que tiver disponível. Há um aumento dos trabalhadores sem carteira de trabalho assinado e uma redução no de trabalhadores com carteira, assim como temos o número mais alto de trabalhadores por conta própria da série histórica.” Nesse sentido, é possível pensar na precariedade de duas maneiras: na forma de contratar e na jornada de trabalho. “Não adianta dizer que formalizou, se não dá condições. No modo de produção capitalista, o sujeito depende do trabalho, de preferência um emprego de qualidade para sobreviver. A maior contradição é ter um sistema que te diz que você só vai sobreviver com um emprego com o mínimo de qualidade, que não te oferece esse emprego.”

Desse modo, a falta de bem estar social vai fazer, como diz a professora, as pessoas procurarem o que tiver, porque não teria outras opções. “Os dados mostram que quem mais perdeu renda foi a faixa um, pessoas que ganham até R$1.600. Outras faixas, sobretudo as que recebem mais de R$8.200, conseguiram recuperar um pouco.” Conforme explica a professora, as faixas com menor rendimento são as que têm maiores gastos com alimentação, que foi um dos itens com maior aumento de preço. O resultado é que as famílias com renda menor estão ganhando menos e gastando mais com itens de primeira necessidade. Com mais medidas econômicas em discussão, como a MP da Liberdade Econômica, novas alterações no trabalho já estão previstas, o que pode desestruturar ainda mais essas famílias.

Consequências
Partindo de todos esses indicadores, as taxas de desocupação não devem aumentar, de acordo com Ana Claudia, mas os empregos que serão gerados, por outro lado, não têm a qualidade que seria desejável. “Isso não só desestrutura a família, como gera uma pressão maior para o Estado. Porque as pessoas começam a adoecer. Enquanto algumas trabalham bem menos do que precisariam, outras trabalham de maneira muito intensa e adoecem mesmo”, pontua.

Segundo a professora, os empregos de qualidade são gerados por uma economia aquecida e por polícias públicas. As duas cresceriam juntas. “Se há aquecimento na economia, parte da produtividade é convertida em políticas públicas diretas, como o aumento do salário mínimo, e indiretas, como o bolsa família e o investimento em saúde e habitação. Quando esses fatores andam juntos, há um círculo virtuoso. Se estamos em um momento de desaquecimento, de dúvida, de desinvestimento, não teria como ser diferente. Se olharmos o mercado de trabalho no mundo, sem os dois, não tem como.”

A saída que ela considera, para essa situação, é a pressão popular. “É o único caminho. Não tem outro. Você não consegue resolver isso individualmente.” Para isso, no entanto, ela reforça que as instituições precisam ser mais ativas.

Postado originalmente por: Tribuna de Minas – Juiz de Fora

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