Cresce demanda por alimentação entre população em situação de rua de Juiz de Fora

Município não tem diagnóstico atualizado sobre número de pessoas sem moradia em JF (Foto: Fernando Priamo)

O último diagnóstico feito sobre a população em situação de rua em Juiz de Fora completa quatro anos em novembro de 2020. O documento fez um retrato do tamanho e das especificidades desse grupo naquele momento. Ao todo, em 2016, eram 879 pessoas vivendo a rua de alguma forma. Depois desse esforço de identificar as características dessa população, nenhum outro estudo com finalidade semelhante, ou com atualizações sobre os movimentos dentro dessa população, foi publicizado. A falta de um novo diagnóstico, somada à pandemia do coronavírus, vivenciada desde março em Juiz de Fora, ilustram algumas das dificuldades que se intensificaram neste ano. Há a impressão de que houve um aumento visível na quantidade de pessoas nessas condições pelas ruas do Centro. Mas o que ficou mais latente é o agravamento do quadro de vulnerabilidade em que elas se encontram, com a permanência na rua e a convivência direta com a fome, demanda que tem aumentado, conforme entidades assistenciais e pessoas que vivem a rua, ouvidas pela Tribuna.

Essencial para prevenção ao coronavírus, higiene é uma das principais necessidades de quem vive na rua (Foto: Fernando Priamo)

Vicente de Paula, 55 anos, vive há dois em situação de rua. Mas, segundo ele, esse é o momento em que identificou mais dificuldades. “A gente pede por alimento, mas ninguém dá. Antigamente, algumas pessoas, alguns grupos, vinham até nós. Agora, tem dia que comemos, tem dia que não. Dormir na rua, nesse frio, é doloroso.” Além disso, ele conta que tem medo de contrair a Covid-19, porque percebe que as pessoas não se cuidam, não usam máscaras e não seguem as orientações de higiene. “As pessoas ficaram mais rígidas, estão com o coração mais fechado. Eu aprendi com a pandemia que temos que ser mais humanos, mais carinhosos com o outro, mas, na rua, não vejo isso.”

Wesley Feliciano, 34 anos, que está em situação de rua há quatro anos, corrobora com esse ponto de vista. “Não conseguimos mais alimentação. Antes da pandemia não faltava, tinha mais gente fazendo doação. Hoje ficamos duas, três noites sem nada. Esperamos amanhecer para tomar café na Fundação Maria Mãe. Sem a fundação, ficamos com fome.” Para Wesley, o preconceito também é uma das principais barreiras. “Precisamos de mais oportunidades. Quando chegamos a uma entrevista (de emprego) e não temos endereço, somos descartados. Muita gente pensa que por vivermos nas ruas, não somos gente. Por isso, muitas pessoas vão fazer coisas erradas, porque precisam comer, beber e só recebem não.”

Falta de oportunidades e preconceito

Um indivíduo em situação de rua ouvido pela Tribuna, que prefere não ser identificado, conta que a falta de trabalho o levou a essa situação. Além da fome, de acordo com ele, há uma enorme dificuldade de acesso a oportunidades de trabalho, algo que foi mencionado por todas as pessoas que conversaram com a reportagem. Para ele, algo que faria a diferença nas ruas seria a maior oferta de vagas. “Tem muita gente desempregada nas ruas. As empresas não estão contratando. Mesmo com pessoas me ajudando a me encaixar no mercado, não estou conseguindo. Até pequenos trabalhos, bicos, não estão aparecendo mais”.

Ele ainda pontua que a dificuldade começa na maneira como a população lida com o indivíduo em situação de rua. “A sociedade tem que enxergar que, mesmo antes da pandemia, já tínhamos muito preconceito. Agora ficou pior ainda. As pessoas olham como se a gente fosse portador de um vírus fatal. Elas poderiam tentar conhecer melhor quem está nessa condição, se comunicar com as instituições que ajudam. É melhor do que ficar olhando para a gente e não fazer nada.” Ele defende que quem tem a oportunidade de ajudar precisa tomar alguma iniciativa. “Durante o dia, às vezes, não tem o que comer. Não tem o dinheiro para trabalhar. O que precisa mudar é o olhar. Ver o próximo como gente, não como um objeto inanimado. Tem pessoas boas na rua, o que falta é oportunidade”.

Para outro morador, que também não será identificado, as esperanças estão no fim. “Me sinto ameaçado pela doença, minha saúde é frágil. Aumentou muito o preconceito nesses tempos. Não vejo futuro, nem trabalho estamos arrumando. Isso não é vida, isso é sobrevivência. Estou sobrevivendo. Se tivesse com família, com meu filho, minha esposa, com meu trabalho, teria diferença entre viver e sobreviver. Mas assim, não.”

‘A realidade mudou completamente’

Quem trabalha com esse público diariamente também percebe outros aspectos. Ainda que a Prefeitura tenha ampliado o número de vagas nos equipamentos de acolhimento, outras entidades recebem as pessoas que não têm acesso aos serviços públicos. As instituições relatam que têm recebido cada vez mais pessoas que fogem ao perfil de quem geralmente procura por esse tipo de assistência. Há, também, casos em que os indivíduos até tinham algum trabalho informal, como a venda de balas, de água e de outros artigos, mas acabaram sem alternativas com a pandemia, devido às recomendações de isolamento social.

“A realidade mudou completamente. Muitas das pessoas em situação de rua são trabalhadores informais. Mas hoje, ninguém abre o vidro para comprar bala, paçoca, porque a orientação é o isolamento. Muitas pessoas deixaram de circular e de contribuir”, conta a coordenadora do Centro de Referência em Direitos Humanos (CRDH), Fabiana Rabelo. Ela diz que agora, os recursos com os quais as pessoas em situação de rua contavam ficaram ainda mais reduzidos. “Muitos vendiam recicláveis, tinham alguma forma de buscar um sustento mínimo, para além da assistência. Agora, eles passam a depender exclusivamente dos serviços públicos.”

Nesse período, a carência que chegou primeiro ao Centro de Referência foi a fome. No espaço, estão sendo oferecidas refeições diariamente. Há, segundo Fabiana, pelo menos 85 pessoas que procuram o CRDH todos os dias, buscando alimentação, também em razão de mudanças que surgiram com a pandemia. “As pessoas que conseguiam ter acesso ao Restaurante Popular não podem mais buscar o serviço, porque ele está fechado, em função do distanciamento social. Os outros restaurantes e lanchonetes que contribuem com alguma refeição estão fechados também. Muitas instituições filantrópicas e de caridade não pararam, mas diminuíram muito a frequência. Há mais de um ano não víamos a fome tão de perto”, lamenta Fabiana.

O CRDH defende que todas essas pessoas, e não só as que aderiram aos equipamentos públicos, tenham acesso a pelo menos três refeições diárias, para que tenham garantido o direito à segurança alimentar. A preocupação, além do coronavírus, é com a fome, o frio e a falta de espaços adequados para higiene, essencial na prevenção à Covid-19.

PJF fez mudanças na estrutura de assistência

Em um período muito curto de tempo, os serviços de atendimento da população em situação de rua precisaram alterar seus procedimentos. Uma força-tarefa multidisciplinar trabalha, segundo a Secretaria de Desenvolvimento Social (SDS), para adequar o acolhimento às pessoas em situação de rua às recomendações das autoridades da Saúde para a prevenção ao coronavírus. De acordo com a titular da SDS, Tammy Claret, todos os equipamentos do município que lidam com essa parcela da população passaram por mudanças, e trabalhos como as inscrições do Cadastro Único (CadÚnico) para programas sociais foram mantidos, também como forma de dar assistência à população.

Em fevereiro, 314 famílias recebiam o Bolsa Família na cidade, segundo a SDS. Até o início de julho, eram cerca de 346. Conforme a titular da pasta, ao todo, 516 pessoas com inscrição no CadÚnico eram indicadas como em situação de rua, também até o início do mês passado. Segundo Tammy, desde o início do ano, mais dez pessoas passaram a receber, também, o auxílio moradia. Elas estão em transição, saindo das ruas e indo para moradias. Os números, segundo ela, refletem um esforço de toda a equipe, que envolve não só a pasta, mas também das entidades que formam a rede e de outras secretarias da Prefeitura.

A Casa de Passagem, que atendia cem pessoas, teve sua capacidade dividida com mais dois outros ambientes. Em parceria com a Secretaria de Educação, o acolhimento tem acontecido também na Escola Municipal Dilermando Cruz e no Curumim Santa Luzia. Além dos dois equipamentos, há também a Casa de Passagem para Mulheres e o Centro de Educação de Jovens e Adultos (CEM) – esse funciona com acolhimento misto, atendendo a uma parcela da população em situação de rua que oferecia muita resistência em acessar aos serviços, conforme Tammy. Todos eles passaram a funcionar 24 horas e a oferecer cinco refeições diárias: café da manhã, almoço, lanche, jantar e ceia.

Segundo Tammy, atualmente, até o início de julho eram oferecidas 1.645 refeições diárias dentro dos espaços de acolhimento. De segunda a sexta-feira, também é oferecido almoço aos cidadãos em situação de rua no Centro Pop e no Centro de Convivência do Idoso, localizado no Centro da cidade, onde a equipe conseguiu organizar o espaço para trabalhar com o distanciamento necessário. Além disso, a Fundação Maria Mãe, tem oferecido almoço aos sábados e domingos a essa população.

Preocupação com a saúde dos assistidos

Tammy salienta que as equipes da Secretaria de Saúde têm visitado os equipamentos com frequência, e outros atendimentos específicos para a população em situação de rua também têm sido feitos no PAM-Marechal. Ela destaca ainda o trabalho de reeducação que tem sido feito com as pessoas que aderiram ao acolhimento. “Nós nunca precisamos usar máscaras antes. Se isso é difícil para quem tem algum acesso (à informação), imagina para quem não tem. Mas é interessante notar que dentro dos equipamentos, eles (os assistidos) têm aumentado a frequência de higienização das mãos, sem precisarmos falar. A equipe de abordagem também distribuiu kits com máscaras e sabonetes e intensificou a atividade de educação, que é muito importante.”

Outro reforço adotado em função da pandemia, de acordo com a SDS, foi a abertura de sete torneiras em praças da cidade, para que as pessoas tenham como lavar suas mãos com maior frequência, entre elas: as praças Antônio Carlos e do Riachuelo, ambas no Centro; na Praça Teotônio Vilela, no Bairro Vitorino Braga; na Praça da República, no Bairro Poço Rico; e na Praça Coronel Jeremias Garcia, em Benfica.

A secretária pontua ainda que todos os equipamentos contam com quartos separados para cuidar de usuários que apresentem sintomas de coronavírus. A parceria com o Consultório na Rua também dá suporte nessa área. Caso surja um caso suspeito, a equipe e a unidade de saúde mais próxima são notificados. A medida é praxe nos espaços de acolhimento para lidar com outras doenças. Além disso, ela reforça que os esforços para a capacitação dos servidores foram redobrados, assim como as orientações para os acolhidos.
Higienização e recursos

A preocupação com a higienização de todos os equipamentos também é central para a SDS. Segundo a titular da pasta, Tammy Claret, o Departamento de Limpeza Urbana (Demlurb) tem feito visitas frequentes aos equipamentos, reforçando a higienização dos espaços. Além disso, todas as casas de acolhimento contam com termômetros para identificar a ocorrência de febre. Conforme Tammy, o que ela percebe nas idas aos serviços é que as pessoas têm mudado seus hábitos, o que também pode contribuir para a vida deles no futuro. “Cada um tem a sua cama, o seu espaço. Isso gera um sentimento de pertencimento e ajuda a repensar a trajetória.”

Em parceria com o Canil Municipal, a SDS passou a oferecer amparo também para os animais das pessoas. Algo que motivava muita resistência no acesso aos serviços era a não aceitação de animais no espaço. Agora, o canil recebe, cuida e coloca chips nos animais. Segundo Tammy, é dada a garantia de que eles poderão reencontrar seus cães e gatos quando deixarem os espaços.

A secretária também afirmou que a pasta recebeu recursos do Ministério do Trabalho para a aplicação em ações voltadas para a população em situação de rua. Inicialmente, foram recebidos R$ 200 mil. Uma das propostas para essa verba é a construção de uma lavanderia no Centro Pop. O restante deve ser investido na compra de cestas básicas.

Estudo sobre segurança alimentar de pessoas em vulnerabilidade

Em estudo sobre a alimentação das pessoas em vulnerabilidade social, feito pelo Núcleo de Assessoria Jurídica Popular Gabriel Pimenta (Najup), formado por alunos da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), em contato com o CRDH, consta a dificuldade de obtenção de dados e de mapear as famílias em vulnerabilidade, com suas rendas per capita. Entregue em abril, o relatório sobre segurança alimentar faz menção à base do Mapa Social do Município em 2012. O levantamento indica que é preciso atualizar os dados para um diagnóstico social que se aproxime da realidade e permita a adequação das políticas públicas.
O relatório aponta que seria necessário oferecer 4.230 cestas básicas, exemplo que indica que o orçamento destinado à segurança alimentar das pessoas em vulnerabilidade é insuficiente. O texto sugere a revisão dos gastos. “Há muitas pessoas na fila, esperando o benefício. Com essa crise, o número deve ser ainda maior”, pontua Fabiana Rabelo, coordenadora do CRDH. O centro, no entanto, não recebeu nenhuma resposta até esse momento.

Nos três primeiros meses de 2020, a Prefeitura distribuiu mil cestas. Esse número era maior, mas, desde 2017, sofre redução. Na época, houve a divulgação de cortes em repasses feitos pela União. À Tribuna, Tammy disse que há uma demanda reprimida. Antes da pandemia, havia cerca de 1.200 pessoas na fila. Ela explica que há critérios que precisam ser respeitados. Quem pleiteia o recebimento das cestas precisa estar no CadÚnico. “O recurso é finito, não é para todos. Ele precisa atender a quem mais precisa. Há uma classificação, em que os aspectos da vulnerabilidade são avaliados – considerando que elas são múltiplas -, mas contando os critérios, o corte de renda é um dos principais. Quanto mais baixa for a renda, maior a chance de conseguir acessar o benefício.”
Esse é um benefício considerado eventual, segundo a titular da SDS. Está ligado à segurança alimentar, com bem-estar, mas é custeado unicamente pelo Tesouro Municipal, não contando com subsídios federais ou estaduais. “Todos os critérios são avaliados pelas equipes técnicas: onde a pessoa mora, qual é a sua infraestrutura, se tem criança em idade escolar, se tem idoso, se tem pessoa portadora de alguma deficiência, se recebe bolsa família, entre outros.”

Mesmo com todas as limitações, dentro do período da pandemia, segundo Tammy, a distribuição das cestas têm aumentando. “Em março, conseguimos sair de mil para 1.600 cestas. Em maio, foram 1.670, o que nos permitiu atender a parte da demanda que estava represada. Essa fila está viva. A cada dia, chegam mais necessidades, e estamos tentando atender.”

Nesse sentido, os Centros de Referência em Assistência Social (CRAS) e os Centros de Referência Especializados em Assistência Social (Creas) seguem realizando atendimentos, com horário reduzido e marcado, evitando aglomerações. “Estamos com várias situações, analisando os grupos, fazendo estudos para melhorar a oferta, que está longe do ideal. Mas vemos que a capacidade que temos de responder é grande, em tão pouco tempo.”

Tammy ainda afirma que os números podem não parecer tão impactantes, mas são muito significativos. “Trazemos os cidadãos para dentro dos equipamentos, espaços preparados para eles, onde fazem suas refeições sentados, podem lavar as mãos quantas vezes quiserem, podem tomar mais de um banho por dia, aprendem a fazer a higiene corretamente e a fazer, também, a etiqueta respiratória”, destaca.

Apesar de todas as dificuldades, Tammy garante que não há desassistência à população de rua, nem à segurança alimentar. “A pandemia ensina que, juntos, encontramos as soluções. Temos feito muitas coisas, embora tenhamos muitos limitadores. Com o empenho de todas as instituições da rede e dos pares, que são as outras secretarias. Construir é muito difícil, mas essa experiência tem nos ensinado muito.”

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Postado originalmente por: Tribuna de Minas – Juiz de Fora

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