Medalha Rosa Cabinda é outorgada a 25 cidadãs juiz-foranas

“Liberdade para mim é isto: não ter medo.” Em um trecho do belíssimo documentário “What happened, Miss Simone?”, que narra a trajetória da cantora Nina Simone, a artista rodeia e enfim chega à conclusão do que concebe como ser livre: não ter medo. Algo que a própria cantora, negra, mulher e de uma família pobre, não deve ter experimentado ao longo da vida. Mas nunca deixou de caminhar nesta direção. Apesar de a estrada que leva a essa ausência de medo muitas vezes parecer infinita, inúmeras mulheres batalham diariamente para que todas alcancemos tal liberdade um dia, ou para que, pelo menos, possamos nos aproximar cada vez mais dela. Nesta quarta (13), 25 delas recebem, em Juiz de Fora, a medalha Rosa Cabinda, em reconhecimento às suas trajetórias de vida, trabalho e luta em prol das mulheres. Além delas, haverá a entrega de uma medalha simbólica a Marielle Franco. “É uma forma de dizer que, um ano após sua execução, não nos esquecemos dela, nem de sua luta, que fortalece a todas nós”, diz Laiz Perrut, uma das idealizadoras da medalha, esclarecendo que a medalha será enviada à família da vereadora posteriormente à solenidade.

Esta é a segunda edição da honraria, cujo nome faz menção à primeira escrava negra que utilizou a Justiça para obter sua liberdade. De acordo com o livro “Aspectos cotidianos da escravidão em Juiz de Fora”, de Elione Guimarães e Valéria Guimarães, Rosa era escrava pessoal de Dona Carlota Halfeld, esposa de Henrique Halfeld, que não por acaso nomeia uma medalha que, historicamente, é outorgada massivamente a mais homens que mulheres. O inventário de Carlota autorizava que Rosa comprasse sua liberdade, porém o viúvo não aceitou a proposta da escrava, dizendo-lhe que ela valia mais do que a quantia que a negra oferecia, mesmo já sendo mais velha (44 anos) e tendo uma deficiência na mão. Assim, Rosa recorreu aos aparatos judiciários, e conseguiu adquirir sua alforria pela quantia que propôs a Halfeld, trezentos mil réis. “A ideia é celebrar a história dessa mulher, demarcando seu nome na memória da cidade, e também celebrar as mulheres de nosso tempo, respondendo à honraria que leva o nome de Halfeld e é outorgada sempre majoritariamente a homens”, pontua Laiz, uma das organizadoras do evento, iniciativa conjunta de diversos movimentos sociais e coletivos feministas da cidade.

Segundo Laiz, o sucesso da primeira edição da medalha corrobora com o objetivo que a organização tinha em mente, de valorizar mulheres, suas histórias e dar visibilidade à sua luta. “Há outras iniciativas que homenageiam as mulheres, mas achamos importante haver essa, que vem dos movimentos sociais e que é outorgada a todo tipo de mulher, desde pessoas públicas, com projeção midiática, a líderes comunitárias, que muitas vezes são invisibilizadas”, pontua. Para algumas das homenageadas, é exatamente este o motivo de maior honra com a outorga. “Há um sentido muito especial de não ser uma medalha que vem do poder constituído, do poder dominante, mas dos movimentos sociais. Então, ela é o reconhecimento de que você faz diferença para quem está ao seu lado na trincheira, e por isso, é a maior honra que eu poderia receber”, diz a psicóloga, professora e ativista da educação Margareth Campos Moreira, que, além de ser contemplada com a honraria neste ano, foi a artista responsável pela arte que ilustra a medalha. “Rosa Cabinda era uma mulher extremamente empoderada, que enfrentou o sistema estabelecido para provar que valia menos e então ter seu direito à liberdade. Isso porque sabia que valia muito”, completa.

‘Mulheres que se posicionam são admiradas, mas querem-nas à distância’

Na lista de 15 homenageadas, há ativistas de diversos movimentos sociais, profissionais que se destacam em suas áreas de atuação – que são as mais diversas -, líderes comunitárias, artistas e mulheres de trajetórias de vida das mais diversas unidas sob um traço comum: a luta e a defesa dos direitos de suas pares. Para a professora de história Giovana Castro, mulher negra e ativista, a Rosa Cabinda é muito mais que o reconhecimento de sua trajetória individual. “Receber uma medalha é sempre uma honra, mas é também muito angustiante, porque acredito que, quando alguém está em evidência, outras estão sendo invisibilizadas. Então, para mim, esta homenagem é uma forma simbólica de outras mulheres negras também estarem representadas e em visibilidade, principalmente na história. Sinto-me muito mais uma representante do que uma homenageada, preciso honrar minha ancestralidade, as que lutaram e morreram antes de mim e as que estão ao meu lado hoje”, diz ela, alertando para a necessidade urgente de que a sociedade esteja atenta à realidade das mulheres negras. “As pessoas têm que saber sobre as batalhas que elas operam todos os dias pela sua sobrevivência no enfrentamenmto às varias formas de violência que recaem sobre esses corpos.”

Para Giovana, é preciso desmitificar a postura de mulheres que tomam posicionamentos e lugares de fala. “Creio que as pessoas gostam de mulheres que se posicionam, elas são admiradas, mas sinto que querem que elas fiquem à distância, ‘não quero essa mulher na minha vida questionando tudo’. Essa admiração e esse incômodo são ambos armadilhas perigosas, porque não existe essa síndrome de perfeição e esse desejo de enfrentamento o tempo todo. O ativismo, às vezes, nos põe em uma solidão enorme. E desistir dele muitas vezes significa se silenciar. Mas uma vez que você põe a cabeça pra fora, é impossível voltar para a toca”, pondera ela.

‘A militância é revolucionária’

Na visão da técnica em saúde do hospital universitário Dandara Felícia Silva Oliveira, a medalha coroa uma luta que ajuda a aplacar essa solidão, que vem do compartilhamento de vivências intrínseco ao ativismo. “Coragem é o nome dessa medalha, pelo nome de uma mulher extremamente corajosa que ela leva e que se reflete na luta das mulheres, sobretudo negras e trans, como nós, que todo dia enfrentamos uma sociedade que quer nossos corpos inertes e mortos. A gente começa a perceber que determinadas opressões dessa sociedade patriarcal, heterossexual, machista e capitalista não recaem só sobre cada uma de nós, mas sobre todas. Perceber a dor das outras pessoas revoluciona a vida, e a militância é transformadora e libertadora por isso, porque a gente vê que nosso próprio empoderamento é o de outras mulheres”, pontua ela, que atuou e atua em vários atos e eventos feministas da cidade. “Fui muito acolhida pelos movimentos feministas de Juiz de Fora, mas sabemos que há vertentes feministas que refutam as mulheres trans por conceberem o gênero sob um viés biológico. O problema disso é a aproximação com movimentos ultra conservadores que desabonam a identidade de gênero e chegam a receber financiamento para aprovação de leis que a desconsideram”, aponta.

Atuando na base, a professora de teatro e escritora Juliana James acredita que é preciso investir cada vez mais no diálogo e na educação. “Assustadoramente muitas mulheres não entendem a importância da luta feminista ao longo da história. Por conta da coragem e dos questionamentos de mulheres de outros tempos que assumimos tantos lugares na sociedade, mudamos nossas relações. E, felizmente, mesmo com toda dificuldade de entrar em muitas escolas para tratar destes temas (porque sim, eu tive), consegui contar histórias de luta de mulheres pra muitas crianças e tive conversas e encontros maravilhosos.” Em coro, a professora Margareth Moreira afirma, em tempos em que tentam assinalar cores a meninos e meninas – só para metaforizar atrocidades muito piores: “A educação só tem qualidade quando é social e só é transformadora quando é para todo mundo. As mulheres se inserem neste recorte e em outro, como trabalhadoras de educação. Em um primeiro momento, não se desvinculava a educação da questão do cuidado, algo que se atribuía como uma questão de mulheres. Hoje, é pela atuação delas que o campo educacional se tornou um espaço potencial de afirmação, resistência, inclusão e transgressão. ”

A entrega da Medalha Rosa Cabinda será nesta quarta-feira, às 19h, na Câmara Municipal

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Postado originalmente por: Tribuna de Minas – Juiz de Fora

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