Mil adolescentes abandonaram os estudos em Juiz de Fora em 2018

A falta de oportunidades, de acompanhamento e de autoestima contribuem para a limitação de horizontes. A evasão escolar, assim, é uma consequência. Fora das escolas, os adolescentes, mais vulneráveis, tornam-se presas fáceis para serem cooptados pela criminalidade. Em Juiz de Fora, de acordo com o Sistema Mineiro de Administração Escolar (Simade), da Secretaria de Estado de Educação (SEE/ MG), aproximadamente, mil alunos do ensino médio da rede pública estadual abandonaram os estudos no ano de 2018. No mesmo período, 1.236 adolescentes, entre 12 e 17 anos, foram apreendidos pela Polícia Militar, como revelam os dados da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp). Todos foram conduzidos à Polícia Civil para apresentação ao delegado, o qual teve responsabilidade de avaliar o caso e tomar as primeiras providências, podendo acarretar ou não no seu acautelamento. O total desses indicadores referentes ao ano de 2019 ainda não foram compilados pelos órgãos governamentais.

A relação entre evasão escolar e criminalidade voltou à baila, depois que uma professora foi morta baleada, na Rua Marechal Deodoro, no Centro de Juiz de Fora, em novembro do passado, após um policial militar reformado tentar intervir na fuga de um adolescente, de 16 anos, que teria acabado de assaltar outra mulher. Com o uso de uma faca, o rapaz abordou a pedestre e fugiu levando o aparelho celular da vítima e R$ 137. Enquanto fugia, correndo pela via, ele foi interceptado pelo sargento da reserva, 44, que teria escutado populares gritando “pega ladrão”. O adolescente chegou a esfaquear o policial no braço que, por sua vez, disparou a arma em sua direção, mas acertou Fabiana Filipino Coelho, 44. Naquela ocasião, houve grande repercussão sobre o motivo de o adolescente não estar em sala de aula àquela hora, mas, sim, nas ruas praticando assaltos.

Para especialistas ouvidos pela Tribuna, tentar entender a evasão escolar como uma opção dos adolescentes que veem no crime uma forma de ganhar a vida é um erro. “Se analisarmos dados estatísticos, poderemos verificar que tal fenômeno não acontece de forma igualitária na sociedade, o que já revela que se trata de uma questão social, que atinge eminentemente as classes populares, ou seja, os filhos da classe trabalhadora. A evasão escolar entre adolescentes e jovens das classes médias é mínima, pois a esse contingente são asseguradas as condições para a permanência na escola”, afirma Ellen Rodrigues Brandão, professora de Direito Penal e Criminologia da Faculdade de Direito da UFJF e coordenadora do NEPCrim (Núcleo de Extensão e Pesquisa em Ciências Penais).

“Muitos têm que deixar a escola para ajudar em casa. Permanecer na escola, muitas vezes, não é uma escolha”, aponta a professora Ellen Rodrigues Brandão

A continuidade nos estudos depende de muitos fatores, desde a oferta de vagas até as condições familiares de cada estudante. Ellen cita o sociólogo Pierre Bourdieu, tido como importante referência no campo pedagógico e científico no Brasil e no exterior, para quem o processo de aprendizagem é transpassado pelo afeto. “Podem ser compreendidos como afeto não apenas os sentimentos positivos, mas também os negativos. Por exemplo, quanto um jovem de classe média completa o ensino médio, ele é tomado, na maioria das vezes, por um sentimento que lhe parece natural e que lhe repercute como desejo de continuidade nos estudos, de perspectivas de cursar um curso superior e ingressar de maneira formal e bem-sucedida no mercado de trabalho, sentimento que é reforçado pela compreensão de sua trajetória escolar exitosa ou, no mínimo, possível ou nunca antes interrompida. Essa projeção feita por esse jovem vem acompanhada de outros sentimentos que lhe transmitem segurança, como a certeza de ter um lugar para morar, a certeza de ter o que comer e o que vestir, a certeza do apoio dos pais e familiares, enfim a certeza de não estar sozinho ou à deriva no mundo”, ressalta.

Já para os adolescentes das classes populares, a possibilidade de permanência na sala de aula e o futuro ingresso no mercado de trabalho vêm acompanhados de aportes afetivos, como dúvida, medo e desesperança. “Para pobres, negros e moradores de periferias completar o ensino fundamental é nada fácil. Muitos têm que deixar a escola para ajudar em casa. Permanecer na escola, muitas vezes, não é uma escolha. Por outro lado, pesquisas apontam que muitos adolescentes e jovens com trajetórias escolares de insucesso e abandono foram crianças que sofreram abusos e diferentes modalidades de abandono moral e material, o que dificulta a criação de afetos positivos em relação à vida e a ambiente escolares.”

Ellen trabalha há mais de 15 anos acompanhando adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas por condenações por atos infracionais. Ao longo desse tempo, ouviu muitas denúncias de preconceitos sofridos na escola. “Seja por conta de sua cor, seja por suas vestimentas ou por seu odor, questões muitas vezes sequer pensadas, quanto mais sentidas, por adolescentes brancos de classe média. Com isso, não se quer dizer que esses últimos estão errados e os primeiros são eternas vítimas da sociedade, mas, sim, que a questão é muito mais complexa do que parece”, reflete a professora, considerando que, neste contexto, a oferta de vagas e a qualidade de ensino, que também comporta uma série de diferenças a depender da classe social, devem ser colocadas em evidência, uma vez que adolescentes e jovens nem sempre conseguem vagas para estudar, sobretudo quando vêm transferidos de outra escola ou têm trajetórias de expulsão.

Levar os jovens para longe das drogas

Pensar a prevenção da criminalidade é algo que não pode ser apartado de ações para a redução da evasão escolar, aspecto que costuma ser negligenciado no Brasil quando o assunto é segurança pública. Para a professora Ellen Rodrigues, evasão escolar e prevenção ao uso e comércio de entorpecentes são questões indissociáveis, e as ações preventivas devem levar em conta não o afastamento das drogas dos jovens, mas levá-los para longe delas. “O que só será possível se lhe forem dadas alternativas seguras de educação, cultura, lazer, entretenimento, trabalho e vida em comunidade”, pondera.

A professora enfatiza que, como demonstra pesquisas criminológicas, os projetos de prevenção às drogas e à delinquência juvenil mais promissores ao longo do século XX foram os que investiram em criação de atividades recreativas, culturais e esportivas para a juventude nos bairros, com a participação dos familiares e da comunidade. “Prefeituras e Governo federal gastaram infinitamente menos verba na prevenção do que nas ações de repressão”, diz ela, citando o Chicago Area Project, que funciona desde os anos de 1960, na cidade de Chicago (EUA), e o projeto Fica Vivo, executado há mais de uma década, na grande Belo Horizonte, e também há um ano e meio em Juiz de Fora.

De acordo com Ellen, nas comunidades em que foi possível reverter os quadros de delinquência juvenil e ter avanços quanto à evasão escolar e prevenção da criminalidade, houve um esforço por parte do Poder Público e das equipes escolares em oferecer mais atividades, permitindo que os jovens permanecessem mais tempo nos colégios. Além disso, houve treinamento dos profissionais de educação, com equipamentos que tornaram o ensino e o ambiente melhores e mais atrativos. Outro ponto importante, assinala a docente, é a abertura da escola às famílias e à comunidade, levando em conta a cultura, os costumes, tradições e eventuais rivalidades, desenvolvendo metodologias de cultura de paz.

16 adolescentes são suspeitos de homicídios em 2019

Mesmo com a queda significativa dos homicídios no ano passado, quando foram contabilizadas 65 mortes violentas, ou 27,7% a menos do que em 2018, pelo menos 16 adolescentes foram investigados por suspeita de participação nesses crimes. Os dados são da Delegacia Especializada de Homicídios, com base nos pedidos de acautelamento de jovens solicitados à Justiça dentro dos 60 inquéritos instaurados pelo delegado Rodrigo Rolli. Já ao contrário de anos anteriores, nenhum adolescente está entre as vítimas dos assassinatos de 2019, embora quase a metade dessas seja formada por jovens de até 25 anos.

O delegado destaca que, logo nos primeiros dias do ano passado, houve uma “eclosão” de homicídios praticados por menores infratores, sobretudo na Zona Norte. Os dois primeiros crimes fatais contra a vida naquele período teriam tido a participação de um mesmo adolescente, 15, em um intervalo de dois dias. Em 6 de janeiro, André Luiz de Azevedo, 39, foi morto com disparos à queima-roupa na Vila Esperança I, sofrendo três tiros na cabeça e um no coração. No dia 8, Ilson Pires Ribeiro, 30, foi executado com cerca de dez tiros no mesmo bairro. O suspeito foi apreendido dois dias depois por meio de mandado de busca expedido pela Vara da Infância e Juventude. As motivações estariam ligadas à rivalidade entre moradores.

Ir e vir para a escola

Ainda no começo do ano passado, em 10 de janeiro, um adolescente, 17, foi apreendido em flagrante pela Polícia Militar por suposto envolvimento na morte de Rosana da Silva Campos, 48, encontrada com diversas pedras ao redor do corpo em um estacionamento na Vila Alpina, Zona Leste. A vítima teria sido empurrada de um barranco e depois apedrejada. O crime estaria relacionado ao tráfico de drogas.

A professora de direito da UFJF, Ellen Rodrigues, analisa que os conflitos entre gangues, muitos deles permeados pela questão dos entorpecentes, são representativos na cena criminal da cidade. “Juiz de Fora tem como uma de suas principais características no âmbito político-criminal as rivalidades e disputas entre bairros tidos como rivais, situação que vem sendo cada vez mais agravada pela questão das drogas e disputas de território para o tráfico.”

Segundo ela, isso impacta diretamente na questão escolar. “Para os adolescentes dos bairros tidos como os mais violentos, ir e vir para a escola não é simples, pois muitas vezes têm que passar por zonas de tensão e/ou trafegar em ônibus frequentados por jovens dos bairros tidos como inimigos, o que por si só é um desestímulo, tendo em vista o medo de represálias.” Além disso, pequenos conflitos normais de sala de aula podem se tornar brigas de grandes proporções e, como muitos dizem, “namorar meninas de outro bairro pode ser perigoso demais”. Ainda em decorrência dos confrontos, pode haver necessidade de transferência escolar, sendo muitos direcionados a colégios centrais, levando a outros problemas, como despesas com transportes e a própria vulnerabilidade de andar sozinho depois das ameaças sofridas.

“Adrenalina do crime” custa suas próprias vidas

O delegado Rodrigo Rolli pontua que o envolvimento de adolescentes em assassinatos é uma constante. Ainda em 2019, houve casos de repercussão, como a morte do motorista de aplicativo Edson Fernandes Carvalho, 21, assassinado com um tiro na cabeça, em tentativa de assalto, no dia 8 de novembro, no Bairro Santos Anjos, Zona Sudeste. Um jovem, 15, foi apreendido em flagrante e estava foragido do Polo de Evolução de Medidas Socioeducativas (Pemse), reforçando a reincidência de infratores. Ele é quem teria apertado o gatilho. Já outro suspeito, que teria atuado como comparsa, 16, foi apreendido no decorrer das investigações e acautelado por outro homicídio, ocorrido no dia 19 de setembro. Na ocasião, um homem, 20, foi alvejado por 19 disparos dentro de um bar.

A ordem para matar, neste último caso, teria saído de dentro da cadeia, ou seja, adolescentes continuam sendo aliciados e usados por adultos, inclusive aqueles já presos, para praticarem delitos graves. Outro exemplo envolve um adolescente, 17, identificado como autor do homicídio de Carlos Bento dos Santos Filho, 44, morto com três tiros, dois na cabeça e um no peito, enquanto trabalhava no corredor de um supermercado em Benfica no dia 14 de novembro. Neste crime, as investigações demonstraram que o infrator teria vingado a morte do próprio pai, presenciada por ele há 13 anos, quando era criança, dentro de um bar no Santa Rita, Zona Leste. No entanto, a Polícia Civil também o identificou como um dos sete envolvidos na morte de José Francisco Gonçalves dos Santos, 29, executado a tiros na manhã do dia 20 de setembro, logo após deixar a Casa do Albergado José de Alencar Rogêdo, no Centro, onde cumpria pena em regime aberto. O delegado ainda pediu o acautelamento de um segundo adolescente. A ordem para a execução também teria partido de dentro de uma unidade prisional.

“Os adultos estão pensando duas, três vezes antes de matar, porque sabem do rigor da lei penal. Já para os menores, a lei é mais branda”, avaliou o delegado, se referindo ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). “É uma lei específica, sem críticas. Mas eles mesmos, os menores, não se sentem intimidados. Isso leva com que pratiquem com maior facilidade o crime de homicídio. Eles não têm temor da lei, e os maiores acabam por utilizá-los”, concluiu.

Para a professora Ellen, “o que leva adolescentes e jovens negros, pobres, de baixa escolaridade e do sexo masculino a se tornarem alvos fáceis para o tráfico de drogas e, ao mesmo tempo, a terem cada vez menos adesão à rotina escolar”, deve-se também ao fato de que, para esses jovens, o tráfico aparece, muitas vezes, como a oportunidade mais próxima de trabalho e aquisição de dinheiro, haja vista que o mercado de trabalho formal não lhes é acessível, seja pela falta de qualificação, pela pouca idade ou pela aparência. “Além disso, no mundo do tráfico esses jovens conseguem muitas vezes o reconhecimento e respeito do grupo e têm acesso aos bens de consumo mais desejados, como tênis, celulares, bonés de marca.” Na sua percepção, o “movimento” do tráfico também ocuparia o vazio e a ociosidade que compõem o dia a dia desses adolescentes, dando certo “sentido” a suas rotinas, já que não moram em bairros que contam com praças e atividades de cultura e lazer. Ela enfatiza, entretanto, que essa “adrenalina do crime”, na maioria das vezes, custa suas próprias vidas.

15 mil voltaram às salas de aula

A Secretaria de Estado de Educação (SEE/MG) afirma que vem realizando um conjunto de ações que objetivam combater a evasão escolar, a reduzir as desigualdades regionais no ambiente escolar e a elevar os indicadores de aprendizagem. Entre essas iniciativas, a pasta destaca a busca ativa de alunos infrequentes. “Cerca de 15 mil estudantes que estavam infrequentes ou que estavam quase deixando de frequentar a escola em 2019 voltaram às salas de aula em toda Minas Gerais”, informa a SEE, acrescentando que o objetivo dessa iniciativa é apoiar a permanência dos estudantes em sala de aula e garantir a conclusão de sua trajetória escolar. Conforme a Secretária, em razão da busca ativa, cerca de 310 alunos que estavam infrequentes ou prestes a abandonar os estudos, ano passado, voltaram às salas de aula nas escolas estaduais de Juiz de Fora.

Ellen Rodrigues pontua que o comprometimento do Poder Público em viabilizar não só melhorias, como a efetiva remuneração e condições de trabalho aos professores, é essencial para driblar a evasão escolar. “Normalmente, quando apresento esses pilares, consigo observar o olhar de desânimo de meus interlocutores, haja vista o quão distantes estão esses objetivos da realidade brasileira e, claro, juiz-forana. Mas, por outro lado, temos todos o desejo sincero de viver em uma sociedade melhor e acredito que esse “desejar” deve nos mover e, não, o contrário. Muitas vezes as medidas necessárias parecem utópicas e desanimadoras, mas não nos deixemos abater: utópicas são as prisões e a força bruta pautada unicamente na repressão, essas sim nunca cumpriram suas promessas de nos trazer paz social.”

Postado originalmente por: Tribuna de Minas – Juiz de Fora

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