“Na pele delas”: Cida e a luta contra o machismo, o racismo e a exclusão social

Enquanto conversa, Cida está atenta a tudo que se passa no entorno. Sabe exatamente o que a moça que tocou a campainha precisa. Pede a alguém de sua equipe que direcione algo a outra pessoa que aguarda na entrada da instituição. Busca com os olhos as responsabilidades que vê. Recebe todas com um sorriso aberto. Preocupa-se com o que se passa com cada um a seu redor e se dói com as situações de vulnerabilidade que chegam a ela todos os dias. Ela não consegue mencionar quantas pessoas passaram, ao todo, pela Sociedade Beneficente Mão Amiga, desde a sua criação, em 1982, mas a estimativa que tem é a de que promove, pelo menos, 1.500 atendimentos por ano.

“Tem pessoas de 50 anos, 60 anos que passam e me chamam de mãe. Eu fico toda feliz. Uma mulher, uma vez, me perguntou o porquê de eu deixar elas me chamarem assim. Mas o melhor título que tem é mãe, gente!” (Foto: Fernando Priamo)

As histórias de Cida e da instituição, muitas vezes, se fundem, já que o trabalho, nesse ano, completa 38 anos. É importante falar sobre esse trabalho, porque ele diz muito sobre a vivência de Cida sobre ser mulher. Ela foi criada em Além Paraíba e conta que a necessidade de fazer algo pelo outro a chamou desde cedo. “A casa da minha mãe ficava para lá da ponte. Sempre via mendigos por lá. Eu achava aquilo um absurdo. Uma pessoa não ter casa, não ter alimento. Eu dividia meu prato de comida com aquelas pessoas. Sempre pensava em fazer alguma coisa para ajudar. Sentia que eu estava ali para fazer a diferença para as pessoas da minha cidade.”

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Foi quando iniciou esse trabalho, começando a distribuir leite para crianças no Bairro Jóquei Clube 1 e, depois, migrando para o Bairro Vila Olavo Costa, que ela se entendeu como uma mulher. Isso aconteceu, porque enxergou a necessidade de outras mulheres. “Me senti mulher a partir da responsabilidade de ajudar outras mulheres da região. Para mim, é gratificante, porque através disso, tive acesso a muito conhecimento. Fui apresentada a mulheres maravilhosas.”

Mulheres se unem para trabalhar

Justamente por ter entendido que as mulheres ao seu redor precisavam de apoio, que Cida resolveu que era preciso uni-las. Juntou um grupo de dez mulheres em um trabalho que foi chamado de ‘Mãe Social’, no qual uma apoiava a outra, para que elas pudessem trabalhar. A ideia é que essa rede de mulheres fosse a forma de driblar essa dificuldade, até que o poder público conseguisse construir uma creche.”A partir daí, criamos um leque para ajudar ainda mais pessoas, que é o que fazemos até hoje.”

“Realmente, foi uma demanda minha juntar todas elas. Fomos para a Vila Olavo Costa, que era muito mais carente do que é hoje e passávamos várias necessidades. Então, nos reunimos para que cada uma pudesse fazer um pouquinho pela outra. A responsabilidade cresceu de novo.” Foi na luta pelo acesso, ao lado dessas mulheres, que Cida entendeu que seria vista pela sociedade de forma diferente, pela condição de ser mulher.

“As pessoas, às vezes não aceitam, não só porque eu sou mulher, mas também porque eu sou negra. Porque já tivemos várias reuniões, em vários órgãos, em que você chega e, por ser negra, você é a última. Não priorizam a gente. Eu passei por muitas coisas. Por ser mulher e por ser negra. Tive momentos difíceis. Fui ajudada por outras instituições. Eu sei na pele o que é. Você vai para um lugar, você quer aprender. Fui muito humilhada e queria mudar o círculo dessa história.”

Foi na luta por ela e pelas outras que Cida encontrou as barreiras do machismo e do racismo. “Várias vezes me senti questionada por ser mulher. A gente fazia uma comissão e íamos em órgãos públicos para pedir alguma ajuda para a nossa comunidade. Como foi o pedido da creche. Eu também me tornei presidente do bairro por oito anos. E, nessa época, ouvimos muitos nãos. As pessoas não aceitavam que estávamos à frente, porque a presidência do bairro é um trabalho político. Às vezes, batíamos no lugar e éramos rejeitadas. Já ouvimos: ‘ninguém da sua diretoria é homem para representar você?’”, relata.

Não ser ouvida e não ser atendida em suas necessidades pelo Poder Público é algo que a incomodou, mas, internamente, ela também enfrentou os olhares enviesados pelo machismo.

“As pessoas não aceitavam facilmente eu estar na presidência, eu estar mandando. Tive diretores que tiveram uma rixa particular comigo. Porque eles não achavam que eu tinha que mandar neles. Eles teriam que mandar em mim. A gente batalhou muito para conseguir chegar até aqui.”

Para Cida, a mentalidade sobre a mulher ainda precisa ser modificada, para que elas sejam vistas com o respeito que merecem. “Hoje, posso dizer que temos juízas, políticas, médicas. Eu mesmo sou muito reconhecida. Tem muitas mulheres que têm a minha admiração. Tenho uma amiga juíza e é tão importante. Fico tão feliz de saber que ela está bem e dá continuídade ao nosso trabalho, como uma mulher. Agora falta isso, cada vez mais as mulheres receberem esse reconhecimento.”

‘Mãe de todos’

Mãe é um título que soa bem nos ouvidos de Maria Aparecida da Silva. Embora, muitas vezes, a força da união das mães que ela apoiava não parecessem suficientes para que elas fossem ouvidas, como gostariam e até precisariam que ocorresse. “Tem pessoas de 50 anos, 60 anos que passam e me chamam de mãe. Eu fico toda feliz. Uma mulher uma vez me perguntou o porquê de eu deixar eles me chamarem assim. Mas é o melhor título que tem é mãe, gente! Acho muito bonito. Tem catador de papel que passa e me chama de mãe, me pede algo e eu digo? Vem cá, meu filho! Sempre que posso ajudar, eu ajudo.” Para Cida, mãe, é a primeira mulher, onde tudo começa. “E não é bonito esse título? Eu acho lindo!”.

Ser mãe de 14 filhos, ‘sete legítimos e sete adotivos’, segundo ela, sendo que a maioria é mulher é outra responsabilidade. “Conversamos muito sobre a união feminina aqui. A maioria dos voluntários é de mulheres. Fazemos por amor e, na medida do possível, todas são felizes com o que fazem. Nos juntamos e conversamos sempre. Juntas somos mais fortes mesmo! Não acredito em competição feminina, nunca tive problemas com as mulheres. Fazemos amizades, adquirimos confiança, porque assim conseguimos unir a todas. Estamos sempre conversando, com palestras, aqui e em outros lugares. Estamos mais unidas dessa vez. Chegou a nossa vez!”

Postado originalmente por: Tribuna de Minas – Juiz de Fora

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