O medo de juiz-foranos que precisam trabalhar nas ruas

Motoboys estão selecionando as entregas, para evitar riscos. Alguns já se recusam a circular por clínicas e hospitais (Foto: Fernando Priamo)

A afirmativa de que as ruas estão vazias não é verdadeira, já que desconsidera o trânsito de pessoas como Gelson Severo Araújo, de 40 anos, que todos os dias sai de casa para trabalhar como coletor de lixo do Demlurb. Em casa fica a mulher, atualmente desempregada, e os quatro filhos, entre 13 e 3 anos. Também fica a segurança. “Minhas crianças, principalmente, ficam com muito medo de eu sair para trabalhar, mas não tem outro jeito. A gente fica um pouco apreensivo. Medo, temos todo dia. Com essa circulação do vírus, o receio é maior”, diz o homem, certo da importância de seu ofício. “Se a gente parar a cidade vira um caos.”

A apreensão não é só de Gelson. “Todo mundo está preocupado”, diz, referindo-se aos colegas que continuam trabalhando na limpeza de Juiz de Fora. Profissionais de setores considerados essenciais para o funcionamento da cidade assistem ao esvaziamento das ruas, incorporam novas rotinas para reduzir a exposição ao coronavírus e esperam que o momento de isolamento forçado contribua para a valorização de ofícios invisibilizados no dia a dia das ruas. Enquanto as ruas estão mais limpas com a queda no movimento, o coletor aponta um considerável aumento no volume de lixo domiciliar, já que as pessoas estão ficando mais em casa, possibilidade descartada na profissão dele.

“Ficaria mais tranquilo se estivesse em casa, porque a gente passa em tudo quanto é lugar, lida com todo tipo de pessoa”.

As práticas de prevenção, afirma Gelson, entraram para sua rotina. “Aqui no serviço toda hora a gente passa álcool em gel. Em casa geralmente alguém sai para comprar pão ou ir no mercado, e também higienizam muito as mãos”, assegura, reconhecendo que a segurança da própria família passa por seus gestos cotidianos. “Meu maior medo é levar para a casa o vírus. E eu também não posso pegar, porque todos são dependentes”, comenta. O frentista Sergio Henrique Roque, 47, também teme pela saúde da família, em especial pela sogra, já idosa. “Por ela ser de idade, a gente toma ainda mais cuidado”, diz, garantindo utilizar álcool em gel e lavar as mãos com frequência. “Não tenho tanto medo porque só saio para trabalhar e volto para a casa. Tento obedecer tudo (as práticas de prevenção) para não correr riscos.”

Redução de exposição como prevenção

Enquanto o enteado, também frentista, se prepara para aderir a um sistema de escala, Sérgio mantém a rotina, muito mais lenta que o habitual. “Diminuiu muito o movimento porque pararam as escolas, e as empresas, em muitos lugares”, pontua ele, que ao longo do expediente num posto de gasolina da Avenida Brasil encontra tempo para sentar-se entre um cliente e outro, a grande maioria preocupada, evitando o contato direto. No trabalho do entregador de gás, Márcio Martins, 50, os apertos de mão foram extintos e uma distância mínima entre ele e o cliente foi implementada como formas de prevenção contra o coronavírus. Há 25 anos na profissão, Márcio foi além: diminuiu consideravelmente seus dias de trabalho. As entregas, antes distribuídas em seis dias da semana, concentraram-se em apenas três dias e, a partir da próxima semana, serão feitas apenas às quartas e sábados.

“Tem lugares que nem entro mais e deixo do lado de fora”, diz o profissional, que só conseguiu reduzir sua agenda por trabalhar com uma clientela fixa. Vendas novas não estão sendo feitas, e ele repassa essas demandas ao depósito. “Os clientes são fidelizados. Eles esperam e confiam que vou levar o gás. É um trabalho de primeira necessidade, não posso parar. Se chegar a um ponto crítico, com os carros parando de circular, talvez só o depósito fique funcionando, e as pessoas precisem buscar, mas, por enquanto, continuo assim”, ressalta ele, o único de casa a sair. A esposa, professora, parou de trabalhar, assim como a filha, estudante, parou de ir ao colégio. O filho trabalha de casa. “Só eu que estou escapando”, brinca, afirmando ainda manter as contas fechando.

Rodrigo Monteiro, 34, também garante o rendimento apostando no aumento do valor das corridas que faz como motoboy. Assim, reduziu sua exposição ao vírus e manteve o faturamento. Na última terça-feira (24), ele conta ter feito apenas três entregas. “Se estou saindo para arriscar, então, tenho que ser bem pago”, explica. “Estou evitando pegar entrega em hospital e lugares com muita gente. Estou selecionando as entregas. Recusei uma entrega numa clínica hoje”, diz ele, adotando práticas preventivas como lavar as mãos, usar álcool em gel e trocar de roupa logo que adentra a casa.

“Meu sogro e minha sogra não estão saindo de casa, e quem faz compras somos eu e minha esposa. A rotina tem mudado bastante. A gente está com medo”.

No momento em que restaurantes e muitos outros estabelecimentos funcionam apenas por delivery, o aumento da demanda de Rodrigo poderia render-lhe um faturamento maior, mas esse não é seu interesse, garante. “Tem tocado muito, mas como tenho cobrado mais caro, tenho pegado menos entregas. Posso até ganhar mais, mas é mais arriscado. O motoboy tem contato com elevador, com muita gente”, aponta ele, que tem buscado focar em outras fontes de renda, como o trabalho de desenvolvedor de sites. “Se os números aumentarem muito, pretendo parar como motoboy. A gente tem família.”

Queda no movimento e no faturamento

Proprietário de uma distribuidora de água mineral, João Samuel, 41, também teme os próximos dias, semanas e meses. “Não estou otimista. Se não houver uma ação conjunta dos governos para os próximos meses, vai ser difícil continuar”, avalia, calculando uma queda de 80% dos pedidos nos últimos dias. “Semana passada, o povo comprou muito. Vendi muitos kits para as pessoas estocarem água. Agora caiu drasticamente o movimento”, lamenta. Roberta Gonçalves, 37, dona de uma empresa de delivery de marmitex, também viu seu faturamento despencar recentemente. “Só hoje percebi uma queda de 60%. Minha teoria é que as pessoas estão com medo e economizando o máximo, porque não têm noção de como vai ser daqui para frente. A única certeza que tenho é que vou ter que parar, porque não terei recursos”, diz.

“Estou preocupado com as despesas, porque diminuíram as vendas, mas os gastos são os mesmos”, pontua João, preocupado também com a própria vulnerabilidade, já que é ele mesmo quem entrega a água.

“Não entro mais nas residências. E quando recebo o dinheiro higienizo as mãos. Nunca tive as mãos tão limpas como agora”.

Segundo ele, mesmo explicando tratar-se de prática preventiva, muitos clientes reclamam por ele não entrar. “Há falta de consciência das pessoas, que querem ficar protegidas, mas não se importam com quem ainda precisa trabalhar. A minha é uma profissão de risco que ninguém valoriza”, reclama.

Oportunidade de valorização social

No cotidiano de Renato Silva Souza, 35, foram suspensas manutenções preventivas e atendimento em prédios com mais de um elevador. Técnico de elevador, ele continua transitando pela cidade para consertar equipamentos parados. “Não tem jeito. Acabei de vir de Três Rios, onde já tem alguns casos, mas não tive tempo para me preocupar”, admite. Ainda que os chamados tenham diminuído com o fechamento de grande parte dos prédios comerciais, ampliaram-se os chamados em prédios residenciais e hospitais. “Não dá para deixar um equipamento parado num hospital. Estamos num grupo de risco, infelizmente”, ressalta, descrente em relação à valorização de seu ofício. “As pessoas só valorizam quando precisam”, lamenta.

Para o coletor de lixo Gelson Severo Araújo este pode ser o momento para que ele e seus companheiros saiam da invisibilidade a que estão sujeitos. Ainda faz parte de sua rotina pessoas negarem-lhe água ou oferecerem apenas água da torneira. Também é comum, mesmo sabendo que ele trabalha nas ruas, negarem-lhe o uso do banheiro. “Algumas pessoas ainda têm preconceito. Muitos lugares desprezam a gente, olham para nós com outro olhar, como se não fossemos nada”, reconhece. “Por outro lado, tem gente que ajuda muito, elogia. Existem os dois lados”, pondera, apostando que o segundo grupo pode crescer em tempos onde são os essenciais que não deixam as ruas completamente vazias. “Espero que as pessoas comecem a ver a gente com outros olhares.”

Postado originalmente por: Tribuna de Minas – Juiz de Fora

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