Pandemia acentua diferenças e sobrecarrega as mulheres juiz-foranas

Embora as circunstâncias impostas pela pandemia do coronavírus tenham afetado a todos, as mulheres acumularam mais funções, especialmente aquelas ligadas ao cuidado. O isolamento social aumentou o trabalho doméstico e o de cuidados, que são tarefas designadas historicamente ao sexo feminino. Isso obrigou muitas mulheres a deixarem parcial ou integralmente seus empregos, aumentando a informalidade. Por outro lado, também intensificou e deixou mais escancarada a violência doméstica. Há ainda aquelas que, pela natureza de suas profissões, passaram a lidar diariamente com o risco de contágio pelo vírus. Na semana do Dia Internacional da Mulher, dia 8, a Tribuna traz a série “Na linha de frente”, com histórias de mulheres que tiveram suas vidas completamente transformadas pelo coronavírus, falando sobre os desafios que têm enfrentado diariamente para continuar trabalhando (em suas diferentes jornadas) com o risco da contaminação.

“Com a pandemia e a suspensão das aulas, meus filhos pequenos passaram a ficar em casa, mas não era uma opção para mim abrir mão do emprego, porque eu sou o sustento deles. Então, eu tive que adaptar minha rotina e contar com a ajuda da minha mãe, mas sei que muitas mulheres não têm alternativa” (Foto: Arquivo Pessoal)

Caroline, enfermeira: ‘Nossa obrigação não é cuidar, precisamos ser valorizadas’

“Os cuidados domésticos e com filhos sempre recaíram e continuam recaindo em cima das mulheres. Com a pandemia e suspensão das aulas, meus filhos pequenos passaram a ficar em casa, mas não era uma opção para mim abrir mão do emprego, porque eu sou o sustento deles. Então, eu tive que adaptar minha rotina e contar com a ajuda da minha mãe, mas sei que muitas mulheres não tem alternativa”, conta a enfermeira Caroline Fixel Rodrigues, de 36 anos, mãe de um casal de gêmeos, de seis anos, e trabalhadora da UTI de Covid-19 no Hospital Regional João Penido. Divorciada, ela diz ser a maior responsável pela educação e cuidado das crianças, que aumentou após a pandemia.

Caroline mora com os dois filhos e conta com a ajuda dos pais para conseguir trabalhar fora. Isso, segundo ela, é o que tem ajudado mas, por outro lado, também a enche de preocupação, já que ambos são do grupo de risco. “Quando chego do trabalho meus filhos ficam muito grudados a mim, então meu medo maior é algum deles se contaminar a acabar passando o vírus para os meus pais”. Para evitar a doença, a enfermeira diz sempre tomar todo o cuidado necessário, desde a desparamentação até sua higienização ao sair do hospital e ao chegar em casa. Apesar de já estar vacinada, o receio e os cuidados ainda persistem, já que a família ainda está exposta ao vírus.

Toda essa rotina de cuidados – em casa e no hospital – tem sido cansativa fisicamente, mas “abalado muito mais a parte psicológica”, diz. “A gente chega em casa com uma carga de estresse muito alta. E aí temos que lidar com outro tipo de estresse que é ter a família toda fechada em casa. Todos os fatores contribuíram muito para a piora no cansaço mental. Eu tive que buscar terapia, porque não estava dando conta de trabalhar todo o meu psicológico. Com as crianças em casa ficou muito pesado, eles tiveram uma diferença no comportamento e foi difícil de lidar.”

17 plantões semanais

Em meio à rotina desgastante, Caroline também sente a falta da valorização da categoria e a baixa remuneração. A situação a leva a fazer cerca de 17 plantões mensais para, além de cumprir escalas, conseguir um complementar sua renda. “A enfermagem não é bem valorizada. Talvez, por ser uma profissão de cuidado e com mais mulheres, nosso trabalho não signifique muito. Parece que é como o trabalho doméstico, que nunca teve valor. Nossa obrigação não é cuidar, precisamos ser valorizadas, porque é um serviço que faz toda diferença, mas é taxado como algo que deve ser feito por amor. Como amor tem que ser feito, mas por amor não. A gente estudou, a gente tem toda uma capacitação e não é valorizada. Enquanto a classe médica recebe bonificação, as outras categorias menos prestigiadas e que têm mais mulheres não são reconhecidas”.

Juliana, enfermeira: ‘Esgotamento inédito’

Quando se deu conta da dimensão e a da gravidade da Covid-19, a enfermeira Juliana de Almeida Santos, de 34 anos, precisou alterar sua rotina de forma repentina. Atuando na linha de frente no combate à doença, ela vivia diariamente a apreensão de se contaminar e levar o vírus para casa, principalmente porque morava com seus pais e familiares idosos. “Foi um processo traumático afastar da família. Quando eu vi a dimensão e a gravidade da patologia eu senti necessidade de protegê-los me afastando. Foi a forma que eu encontrei de não contribuir para que algum caso chegasse em casa, como depois acabou chegando. Mas eu acho que não ia conseguir viver com o remorso de eu ter levado doença para algum deles.”

“Como todos (meus pais) têm fatores de risco, eu fiquei com a responsabilidade de tomar conta deles, mesmo que de longe, via telefone ou câmera. E essa atenção e o cuidado sempre recaem mais sobre as mulheres”

Praticamente montar uma casa de uma semana para outra, como a enfermeira narra, não foi fácil em meio a uma rotina estressante. Desdobrando-se em dois empregos, na unidade de suporte avançado do Samu e no CTI Covid do Hospital Pronto Socorro, Juliana viu seu trabalho triplicar com o monitoramento remoto que passou a fazer da família. “Como todos têm fatores de risco, eu fiquei com a responsabilidade de tomar conta deles, mesmo que de longe, via telefone ou câmera. E essa atenção e cuidado sempre recai mais sobre as mulheres. No meu caso, eu ainda sou a única filha dos meus pais e, por ter uma profissão essencialmente ligada ao cuidado, isso é inevitável.”

O abalo estrutural causado pela pandemia também respingou na saúde mental de Juliana. “A nossa mudança de rotina foi repentina e para pior, tem sido muito estressante. Até por isso, eu passei a tomar medicação controlada para ansiedade. Sei que deveria cuidar mais da minha saúde, fazer atividade física, mas infelizmente você não tem disposição para fazer mais nada, além de não dar tempo. Para mim é um esgotamento inédito, como eu nunca tinha sentido antes”, diz.

Apoio dentro do trabalho

Passar a lidar com o medo da doença a todo tempo e com os casos da doença que parecem intermináveis trouxe uma vulnerabilidade emocional e física não só à Juliana, mas também aos colegas de profissão que, assim como ela, têm vivido o último ano com o desafio diário de lidar com o coronavírus. Há quase um ano sem se reunir com a família, ela conta como tem buscado forças para encarar a tensão diária.

“As nossas relações de apoio dentro do trabalho estão mais fortes. Dentro da enfermagem, há muitas mulheres, e nós conseguimos entender uma a outra, porque o nosso sofrimento é físico e mental, ainda tem o afastamento da família. Então, a todo o tempo, tenho encontrado suporte das colegas. Se a gente não tiver essa base forte, a gente não consegue sair de casa para trabalhar. É aí a gente encontra força uma na outra.”

“Com a pandemia e a suspensão das aulas, meus filhos pequenos passaram a ficar em casa, mas não era uma opção para mim abrir mão do emprego, porque eu sou o sustento deles. Então, eu tive que adaptar minha rotina e contar com a ajuda da minha mãe, mas sei que muitas mulheres não têm alternativa” (Foto: Arquivo Pessoal)

Sandra, diarista: ‘Vi minha renda diminuir em 40%’

Além de estarem mais expostas na linha de frente de combate ao vírus, de acordo com o Insper, as mulheres também são maioria em algumas categorias economicamente mais vulneráveis à pandemia como, por exemplo, as domésticas e diaristas. Logo no início da pandemia, uma pesquisa do Instituto Locomotiva mostrou que 39% dos empregadores de diaristas abriram mão do serviço destas profissionais.

“Por conta do isolamento social e da crise, muitos contratantes de trabalhadoras domésticas suspenderam o contrato ou não estão contratando mais. Esse é um fenômeno que perpassa todas as classe sociais, mas a gente sabe que a maioria das mulheres que perdeu esses empregos são pobres e negras, e não é à toa que elas estão muito mais em risco. E o acesso ao mercado formal tem a ver com essa história”, analisa a socióloga Célia Arribas.

Apesar de ter continuado com algumas faxinas, a diarista Sandra Cristina Gomes, de 48, deixou de fazer três das cinco que realizava semanalmente antes da pandemia. “Para mim, a maior dificuldade é financeira, porque vi minha renda diminuir em cerca de 40%, enquanto os gastos aumentaram, porque está tudo caro e, agora com filhos em casa, gastamos mais com comida e energia”.

Segundo ela, seu trabalho como diarista é fundamental para manter a casa e a família, já que o marido, impossibilitado de trabalhar por questão de saúde, recebe apenas pelo INSS, o que não dá conta dos gastos. “Por isso eu preciso continuar trabalhando, esse dinheiro que meu marido recebe ajuda, mas eu também sou responsável pelo lar. Tenho receio de sair de casa, de andar de ônibus, sei que corro perigo, mas não tenho alternativa”, diz.

Apesar de o marido assumir parte dos trabalhos domésticos, ela conta que a maior parte fica sob sua responsabilidade, principalmente o cuidado com os filhos. “Eu tenho que ir à escola, buscar as atividades para fazerem e depois levá-las, além de já deixar tudo encaminhado quando saio para ir fazer as faxinas. Tem dias que sinto o acúmulo de funções, porque a gente chega bem cansada. Tem dias que você deita, mas já pensando no amanhã, preocupada se vai dar conta e se vai continuar ajudando em casa.”

Cuidados são protagonizados por mulheres

Pesquisa da organização Gênero e Número, que entrevistou 2.641 mulheres no início da pandemia nos municípios do país, apontou que metade das brasileiras passou a cuidar de alguém durante a pandemia. Conforme o estudo, 41% das mulheres que seguiram no mercado para manutenção de salários afirmaram trabalhar mais na quarentena.

Ainda de acordo com o levantamento, os trabalhos necessários para o sustento da vida foram intensificados na pandemia e são, na maioria das vezes, protagonizados por mulheres. Profissões como enfermagem, por exemplo, em que cerca de 85% dos trabalhadores da área são mulheres no Brasil, mostram que são elas a maior parte da população a estar na linha de frente contra a Covid-19. Muitas são mães e/ou responsáveis por suas casas e familiares e precisam se expor diariamente ao risco do vírus.

“Em todas as fases da nossa vida a gente precisa de cuidados, e é interessante que o aumento do trabalho doméstico nos mostram níveis muito diferenciados e desigualdades importantes entre quem cuida e quem é cuidado. A gente sabe que historicamente o trabalho doméstico é designado a mulheres, que elas dedicam até quatro vezes mais do tempo a esses afazeres em relação aos homens. E essa diferença é significativa se a gente pensar também em variáveis socioeconômicas e demográficas”, lembra a socióloga Célia Arribas, que é professora do Departamento de Ciências Sociais do Instituto de Ciências Humanas da UFJF.

Conforme sinaliza Célia, as consequências advindas com a pandemia foram potencializadas e ficaram mais evidentes para as mulheres, apesar de já existirem no mundo pré pandemia. Na sua avaliação, o impacto do atual cenário na vida delas precisa ser avaliado a partir da ótica da interseccionalidade. “A gente tem que levar em consideração à questão de gênero, raça e classe, e as diferentes mulheres, porque elas são muitas, são brancas e negras, pobres e ricas, mais ou menos escolarizadas, do campo e da cidade, de diferentes regiões demográficas, e isso tudo interfere. E o impacto maior sempre será na classe mais vulnerável do ponto de vista econômico social.”

Mais afetadas emocionalmente

Além de alterar as dinâmicas de vida, trabalho e cuidado, a pandemia também aumentou a sobrecarga psicológica nas mulheres, que além de limparem, cuidarem, educarem, também lançam mão do trabalho mental, na busca de planejarem e organizarem as diferentes demandas diárias. Conforme destaca a psicóloga Adriana Woichinevski Viscardi, os efeitos psicológicos extrapolam a questão da doença propriamente dita e ligam-se mais às condições em que a pandemia está sendo vivenciada pelas mulheres, e são intensificados por desigualdades pré-existentes.

“É importante que se considere que os vários marcadores de desigualdade. É aquela história, a tempestade é a mesma, mas as condições para enfrentá-las são bem diferentes. Neste contexto, algumas mulheres conseguem ajuda para lidar com o acúmulo de tarefas (normalmente de outras mulheres). (…) É um cenário de estresse, de exigência, que afeta inevitavelmente a saúde mental. Normalmente, conseguimos lidar bem com um pouco de estresse durante um certo tempo, mas este tempo está demorando demais, já completamos um ano desta realidade.”

Adriana, que também é professora e coordenadora do curso de psicologia do Centro Universitário Estácio Juiz de Fora, lembra que o isolamento social além de aumentar a demanda por trabalho e cuidados domésticos impossibilita o contato de muitas mulheres com redes de apoio.

“O trabalho invadiu as horas e locais de descanso, os finais de semana, o espaço sagrado da recarga mental. As tarefas precisam ser redistribuídas, e isto não é fácil, pois não é só da tarefa braçal que se está falando aqui, mas do esforço mental de coordenar o cotidiano de uma casa, de uma família. Por outro lado, a rede de apoio, tão cara à saúde mental das mulheres, principalmente de baixa renda, fica inacessível diante do cenário de isolamento. Afastada de sua rede de apoio – amigos, família, relações religiosas, serviços de saúde – as situações de abuso físico, psicológico, sexual, patrimonial, tornam-se ainda mais invisibilizados.”

Impacto posterior

Adriana observa que uma característica intrínseca dos trabalhos indispensáveis para a sustentabilidade da vida (especialmente com crianças e idosos) é que eles não podem ser interrompidos, alguém precisa fazer, e este alguém normalmente é uma mulher. “A pandemia intensificou a necessidade destes trabalhos – emprego, escola e lar ficaram concentrados no mesmo lugar, sendo vividos na esfera privada, lugar historicamente ocupado pelas mulheres. Em função desta exigência do cuidado com a vida, muitas mulheres não têm condições de dar atenção para os efeitos psicológicos sobre sua saúde, o que talvez vá ocorrer depois, num fenômeno de estresse pós-traumático, por exemplo.”

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Postado originalmente por: Tribuna de Minas – Juiz de Fora

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