Pandemia impacta moradores em situação de rua em Juiz de Fora

“Eu já fui preso, moço! Você já viu alguém arrumar emprego para quem já esteve na cadeia?”, indagou o homem, de 48 anos, ao repórter. Ele não quis dizer seu nome e fazia parte de um grupo de cinco pessoas em situação de rua, que ocupava o Parque Halfeld, naquele canto onde ficam as mesas para jogos de dama e xadrez. Ele contou que estava ali com o irmão e a cunhada e mais dois amigos. Um dos amigos estava dormindo no chão em cima de um papelão. A cada um que passava o grupo fazia uma abordagem, ora solicitando dinheiro, ora pedindo para que alguém pagasse um lanche na padaria.

O homem disse que sua família era do Bairro Nova Era II, na Zona Norte, mas que passava boa parte dos seus dias ali. “Trabalho às vezes como ajudante de pedreiro, mas está muito difícil”, afirmou.

Questionado se a dificuldade se devia à pandemia, o homem respondeu que o maior problema era ser enxergado como alguém sem dignidade, já que a sociedade não lhe reservava melhores oportunidades. Quanto ao vírus, ele disse que “tirava de letra”. “Eu já tive o coronavírus. Só que o meu corpo já aguentou tanta coisa, que meu organismo ficou forte e esse vírus não me abateu”, contou o homem, que usava uma máscara no queixo, mantendo a boca e o nariz de fora. “Até o vírus não está querendo nada com a gente”, completou.

No Parque Halfeld, é comum flagrar pessoas dormindo pelo chão, em bancos e até em monumentos (Foto: Fernando Priamo)

O diálogo relatado acima foi observado quando a reportagem esteve no Parque Halfeld no final de novembro, depois que a Tribuna recebeu mensagens de leitores, afirmando que era grande a quantidade de moradores em situação de rua no logradouro. Além do grupo do qual o homem fazia parte, no outro canto do parque, de frente à Câmara Municipal, outros dois homens, também em situação de rua, estavam sentados no chão, bebendo o líquido de uma garrafa, ao lado de uma pilha de coisas que seria fruto da atividade de quem recolhe material reciclável pelas ruas.

Quem trabalha e mora ao redor da praça, que é considerada o coração de Juiz de Fora, relata que a presença da população de rua no local é constante e que, muitas vezes, a tranquilidade é quebrada com brigas, devido ao consumo de álcool, xingamentos e ameaças. “Tem muita sujeira e mau cheiro”, disse um comerciante. Moradora há 18 anos no entorno, uma mulher de 74 anos disse também que a área não tem segurança. “Meus filhos são orientandos a não atravessar o interior do parque”, afirmou. Um servidora pública que trabalha próximo ao Parque Halfeld atesta: “Aumentou muito sim o número de moradores de rua aqui e, depois das 18h, aparecem ainda mais. Acho que eles vêm dormir aqui.”

Vulnerabilidade cresce com a pandemia

No município, como pontua a coordenadora do Centro de Referência em Direitos Humanos (CRDH), Fabiana Rabelo, não existe um diagnóstico atualizado a respeito da população em situação de rua, o que impede a constatação de que houve aumento de moradores em situação de rua na cidade. Todavia, atesta, a pandemia provocada pela Covid-19 deixou a parcela da população mais empobrecida ainda mais vulnerável.

“Estamos enfrentando uma crise sanitária nunca antes vivenciada, que vem mudando a rotina de todos nós e, principalmente, impacta a vida dos mais pobres. Antes da pandemia, a população em situação de rua e os mais vulneráveis exerciam atividades informais, como venda de balas, guarda de carros na via pública e recolhimento de materiais recicláveis. Com isso, de alguma forma, eles tinham uma fonte de renda, que, às vezes, dava para pagar uma pensão ou um espaço para viver. Com a pandemia, essa fonte de renda não é possível. Então, provavelmente, esse aumento que percebemos da população em situação de rua seja vinculado ao desemprego e à pobreza, mas é preciso que haja um diagnóstico, para que possamos conhecer essa população, saber quantas pessoas estão nessa condição, qual a situação de cada um e suas perspectivas, para que o Município possa aplicar e criar políticas públicas para o atendimento mais efetivo na promoção e emancipação dessas pessoas”, destaca.

Segundo Fabiana, o último diagnóstico realizado é datado de 2016 e está ultrapassado. “O que gera contradição, porque a Prefeitura usa esses dados, mas a sociedade vê na rua o aumento dessa população nas calçadas, nas praças. Assim, enquanto não tivermos um diagnóstico atual, não vamos conseguir precisar essa realidade, demonstrando que de fato houve o aumento.”

Pessoas em situação de rua aproveitam bancos e abrigo das árvores no Parque Halfeld para descansar com seus carrinhos de supermercado, cheios de plásticos e papelão para reciclagem (Foto: Fernando Priamo)

Vagas para acolhimento não são suficientes

A coordenadora do Centro de Referência em Direitos Humanos, Fabiana Rabelo, ressalta que, apesar dos esforços, o número de vagas de acolhimento na cidade ainda não é suficiente.

“Desde o início da pandemia, o Município abriu 50 vagas de acolhimento com a criação da Casa Cem para homens e mulheres. A Casa de Passagem para Homens com oferta de 100 vagas foi desmembrada em três locais para atender as recomendações sanitárias, sendo esse total remanejado para a própria Casa de Passagem para Homens, para o Curumim Santa Luzia e para a creche do Bairro Jardim Esperança. Essa divisão foi interessante, porque atende a tipificação nacional, que recomenda que tenha no máximo 50 pessoas por casa. Isso é importante para o trabalho dos técnicos, que pode ser desenvolvido de forma mais efetiva. Ainda existem a Casa de Passagem para Mulheres e a Casa da Cidadania, cada uma com 50 vagas. Todas funcionando 24 horas. Mas estamos vendo que isso não é suficiente e não era suficiente antes da pandemia”, avalia.

Segundo Fabiana, o Comitê Intersetorial da População em Situação de Rua, que teve suas atividades paralisadas em fevereiro de 2019, segue desativado. “Não existe, por parte do poder público, uma sinalização para reativar esse comitê, que é um espaço de articulação e de cobrança. E era composto por representantes da sociedade civil, do governo, da saúde, da educação e do esporte. O funcionamento dele é fundamental, porque as políticas públicas precisam ser construídas de forma multidisciplinar e porque o cidadão em situação de rua precisa ser atendido na sua totalidade. Não é só de assistência, ele precisa de saúde, de educação, o que significa que essas políticas precisam estar ligadas. Então, é necessário um plano para que as secretarias hajam de forma articulada para lidar com essa população.”

A coordenadora do Centro de Referência de Direitos Humanos também toca na questão da segurança alimentar. “As pessoas que estão dentro dos acolhimentos têm suas quatro ou cinco refeições diárias, mas apenas uma parcela muito pequena de quem está em situação de rua tem acesso ao almoço; o restante vai depender de associação beneficente ou do restaurante que doa a alimentação no final do expediente. Então, terá que ficar sempre pedindo, porque o Município não oferece e não garante essa alimentação para essa população. Essa é uma luta do Centro de Referência e estamos cobrando à Prefeitura, principalmente neste período de pandemia, para que garanta, pelo menos, três refeições a essa população.”

Mais de 60 abordagens nos últimos dois meses

À Tribuna, a Secretaria de Desenvolvimento Social (SDS) da Prefeitura de Juiz de Fora informou que, nos últimos dois meses, a equipe da Abordagem Social esteve presente no Parque Halfeld, realizando o trabalho de informação e orientação junto às pessoas em situação de rua que se fixaram no local durante o dia. Segundo a pasta, as ações aconteceram três vezes por semana, nos períodos da manhã, tarde e noite. No total, em outubro, foram 14 dias de abordagem, e, em novembro, os dias chegaram a 11.

Ainda conforme a SDS, foi possível identificar 19 pessoas diferentes, e a elas foram ofertados os serviços socioassistenciais: Casa de Passagem para Homens (CPH), que se desdobrou em três espaços (CPH, Casa Santa Luzia e Casa Jardim Esperança); Casa de Passagem para Mulheres; Casa da Cidadania; Acolhimento Emergencial Casa Cem; Centro Pop Cras Vitorino Braga; e os serviços de saúde Consultório na Rua e o Hospital de Pronto Socorro (HPS).

Ao longo desse período, foram realizadas 63 abordagens, ofertando encaminhamentos diversos, sendo quatro destinados à CPM, cinco para o Centro Pop, dois para Cras Vitorino Braga, um para Casa Cem, dois encaminhamentos para o HPS e dois para o Consultório de Rua.

“As equipes relataram que 12 destas pessoas estavam sempre muito alcoolizadas e 21 abordagens não foram aceitas por este grupo”, ressaltou a pasta, que ainda acrescentou que, durante a pandemia, 155 pessoas foram encaminhadas e utilizaram o novo acolhimento misto, criado para atender as demandas do Covid-19, na Casa Cem. Todas as ações, como informou a SDS, continuam em dezembro.

A pasta ainda informou que o diagnóstico sobre a população em situação de rua tem validade de quatro anos e sua atualização está sendo desenvolvida neste ano, mas com um processo mais lento devido à pandemia do coronavírus. A secretaria também destacou que mais de 1.645 refeições são servidas por dia em Juiz de Fora às pessoas que estão nos serviços da Prefeitura e também àquelas que não aderem aos programas sociais oferecidos.

Nova Administração

Sobre a questão da população em situação de rua em Juiz de Fora, a assessoria de comunicação da prefeita eleita Margarida Salomão (PT) informou que essa parcela da população será vista como “cidadã” na nova administração municipal. “Esse tema é atenção especial para a nova gestão. Prova disso é a criação da Secretaria Especial de Direitos Humanos, pasta que tem entre seus objetivos garantir o acesso aos direitos fundamentais para todos e todas na cidade”, afirmou por meio de nota.

Sobre o aumento da população em situação de rua durante a pandemia, destaca que “a ação imediata é fazer um diagnóstico real do cenário que considere os variados elementos necessários para conhecer as pessoas em sua integralidade. Além disso, é preciso garantir que as unidades de acolhimento emergencial e a Casa de Passagem tenham plenas condições de funcionamento: com recursos humanos preparados, orçamento compatível e território adequado às demandas dos usuários.”

A nota ainda informa que, a médio prazo, a equipe irá “colocar em prática o Plano Municipal da Política para a População em Situação de Rua, construído coletivamente pelos agentes do setor, mas que infelizmente não conseguiu ser implementado pela atual gestão do Executivo. Iremos também retomar as atividades do Comitê Gestor Municipal Intersetorial da Política Municipal para População em Situação de Rua.”

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Postado originalmente por: Tribuna de Minas – Juiz de Fora

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