Para especialistas, flexibilização deve ser embasada por monitoramento

A adesão de Juiz de Fora ao programa Minas Consciente, no dia 16 de maio, inflamou o debate sobre a reabertura de setores comerciais em meio à pandemia de coronavírus. Por isso, a Tribuna convidou infectologistas para repercutirem as medidas previstas pelo programa estadual. De maneira geral, a maior preocupação é que haja aumento da circulação de pessoas na cidade, o que poderia levar ao crescimento do número de juiz-foranos infectados. Conforme os especialistas, para que haja uma flexibilização segura, a curva de casos deve estar minimamente em um platô, ou seja, em um nível estável que vai preceder o declínio da curva de contágio, o que ainda não foi constatado em Juiz de Fora, visto que o número de pessoas diagnosticadas continua subindo.

Com o ingresso na chamada onda verde, a cidade está na mais restritiva de quatro classificações (verde, branca, amarela e vermelha), que permite apenas o funcionamento de atividades consideradas essenciais. Segundo a Prefeitura de Juiz de Fora (PJF), a intenção do Município de se adequar aos protocolos estaduais integra uma estratégia de unificar as ações de enfrentamento à pandemia da Covid-19 em todos as 94 cidades que fazem parte da macrorregião de Juiz de Fora e acabam referenciados pela rede de saúde juiz-forana.

Para o infectologista Guilherme Côrtes, o programa é “tecnicamente bem embasado em relação a etapas de prioridade”. Ele reconhece a importância da retomada das atividades econômicas e comerciais, mas a condiciona a uma instrumentalização do poder público para monitoramento do cenário da doença na cidade, a partir de dados consolidados e, também, do que o especialista chama de “pactuação com a sociedade”. “A decisão de quando fazer a abertura depende não só do número de casos versus o número de leitos de unidade de terapia intensiva. Depende do reconhecimento de em que ponto a epidemia está controlada na cidade e em que ponto as pessoas estão tendo progressivamente menor risco de se infectar (adoecerem e propagarem a doença)”, diz.

Nesse sentindo, Côrtes avalia que para uma retomada das atividades, a curva de casos da doença deveria estar “minimamente no platô da curva atual”. Atualmente, o indicador ainda sobe, apesar de em menor velocidade. “É necessário existir uma coordenação com a sociedade para saber em que momento ir para frente e em que momento recuar. Não é o caminho de uma direção única, é um caminho que você anda um passo à frente, e, eventualmente, dois atrás”, pontua.

Rodrigo Daniel é contra progressão à próxima onda neste momento (Foto: Leonardo Costa/Arquivo TM)

Monitoramento dos dados e dinamicidade do cenário

O também infectologista Rodrigo Daniel de Souza chama a atenção para a dinamicidade do cenário e a necessidade do monitoramento dos dados. “O programa (Minas Consciente) não é somente a retomada gradual. Ela pode tanto progredir quanto regredir. Em uma cidade que está tendo progressão do número de casos, de acordo com o programa, a mudança de onda à frente não vai acontecer. Se os quesitos forem bem monitorados e houver um compromisso de só trocar a onda sem que haja nenhuma manipulação de dados, é um programa extremamente previsível, em que a gente sabe o que e quando vai acontecer”, avalia.

Para Guilherme Côrtes, uma medida segura para a tomada de decisão é entender a velocidade de ascensão da curva, compreendendo o percentual da população que se infectou, a prevalência da doença na população e saber, geograficamente, em que áreas do município (bairro e regiões) há mais e menos casos da doença. “Se isso não é feito, não estamos com uma estratégia cujo objetivo é controlar a epidemia, e sim com uma estratégia que visa a disponibilizar leitos de CTI para todos que adoecerem. Portanto, não estamos agindo na prevenção da epidemia, somente no tratamento dos doentes. E esse é um erro clássico mas políticas públicas de saúde, para qualquer doença. Ressaltando que está correto disponibilizar mais leitos, esta é uma ponta da questão. A outra ponta são as estratégias preventivas de evitar novos casos”, explica.

Testagem

De acordo com o médico, o ideal para avaliar o cenário e ter segurança para avançar na flexibilização das medidas restritivas seria a capacidade de detecção das pessoas sintomáticas na comunidade, assim como a identificação dos seus contatos e a capacidade de isolar essas pessoas. Ou seja, a possibilidade de oferecer testes a toda a população. “O ideal seria entender o percentual de prevalência de doença na nossa cidade, a partir de testagem sorológica de todo mundo, aos moldes que foi feito no Rio Grande do Sul, e realizar testes de PCR para entender a velocidade de transmissão”, exemplifica.

Já o médico Rodrigo Daniel acredita que, na impossibilidade de testar toda a população, o Município deve se embasar na curva de pacientes internados. “Em Juiz de Fora a gente teve um fator que, talvez, outros locais não tiveram, que é o aumento da capacidade diagnóstica a partir da realização de exames pela universidade, e isso aumenta o número de casos. É muito difícil analisar o dado só a partir da curva de caso confirmado, porque isso varia de acordo com o acesso a exame. Então, na verdade, não é possível saber se de fato o número de casos está aumentando, ou se agora está sendo evidenciado uma situação que já estava acontecendo”, pontua. “Então, na minha opinião, a gente teria que fazer a curva dos casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) causados por Covid-19, porque é um dado que não mente, todo paciente internado com suspeita faz o teste. Se a gente considerar que 5% dos pacientes internam, a gente consegue estimar que o número de casos é 20 vezes maior do que o número de internados”, considera.

‘Desaceleração na curva pode causar falsa sensação de segurança’

Nesta quarta-feira (27), levantamento realizado pelo grupo de modelagem epidemiológica da Covid-19 da UFJF mostrou que, apesar de em menor velocidade, a tendência atual é de que a curva de casos confirmados da doença continue aumentando no município. A análise constatou, ainda, que a taxa de isolamento social continua em queda desde 15 de abril até o dia 25 de maio.

Conforme Rodrigo Daniel, o ideal é que a curva comece a cair. Ele explica que a doença tem um ciclo de incubação, manifestação de sintomas e diagnóstico que, normalmente, é verificado em uma prazo de 14 dias. Por esse motivo, analisa, é importante que o projeto estadual preconize essa análise e revisão de medidas e indicadores para que os municípios avancem ou não na flexibilização.

“A gente viu que houve uma desaceleração do número de casos. O que a gente pode pensar que aconteceu há 15 dias para que isso tenha acontecido? Talvez seja o uso de máscaras por todos, talvez isso tenha tido um efeito e a gente esteja sentindo agora. Além disso, não teve, aparentemente, nada de diferente. Mas o isolamento social diminuiu. Portanto, essa situação só vai refletir daqui a duas semanas. Como a saída das pessoas às ruas não mostra um resultado imediato, talvez dê uma falsa sensação de segurança, e a pessoa só vai perceber isso depois que a situação ficar mais crítica. Nesse cenário de curva crescente, não existe previsão de mais afrouxamento das regras. Se a coisa vier piorando, a tendência é manter ou dar um passo atrás”.

Isolamento social deve ser mantido

Em conferência na última segunda-feira (25), o diretor-executivo da Organização Mundial de Saúde (OMS), Michael Ryan, afirmou, em relação ao Brasil, que sem testar todos os casos suspeitos e sem rastreamento de contatos para determinação de quarentenas destas pessoas, o país não pode abrir mão do confinamento. Em Juiz de Fora, apesar da ampliação da capacidade diagnóstica a partir da realização de testes para a detecção da Covid-19 por laboratórios da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), os exames são hoje realizados de acordo com definição do Ministério da Saúde. Neste momento, a pasta federal orienta a aplicação dos testes em profissionais de serviços de saúde, de segurança, e a verificação dos pacientes com casos graves e óbitos.

Nesse sentido, Côrtes defende que as medidas visem, ainda, reduzir a chance de as pessoas se encontrarem. “Quanto mais as pessoas se encontram, maior será a velocidade da curva (de casos confirmados). Se a gente consegue segurar essa frequência, portanto, a velocidade da curva, mesmo com algumas coisas funcionando, cai. Isso é o que todo mundo deseja. No entanto, na opinião epidemiológica, a gente não está instrumentalizado para fazer isso”.

Para exemplificar, o médico cita o “natural afrouxamento” que já vinha acontecendo em relação às orientações de isolamento por parte da população, antes mesmo da adesão do Município ao programa estadual. “Isso já mostra que essa pactuação com a sociedade a gente já não tem. Se essa intensificação (da circulação de pessoas) vai impactar a curva de casos, não sabemos. A gente tem que monitorar para saber. Eu acho que a tendência é que, minimamente, continuemos ascendendo na curva”.

Transparência e divulgação de dados

Guilherme Côrtes defende coordenação com a sociedade (Foto: Marcelo Ribeiro/Arquivo TM)

Ainda segundo o infectologista Guilherme Côrtes, a partir da análise somente de números absolutos não é possível tomar decisões seguras a respeito de flexibilização das medidas. Diversos indicadores e dados precisam ser levados em conta. O especialista, portanto, critica o fato de tais dados não terem sido amplamente divulgados pelo Município antes da adesão ao programa Minas Consciente. “A gente precisa de transparência. Essa decisão é diária, não é a cada duas ou três semanas; os dados precisam ser monitorados e divulgados diariamente, para que a população também acompanhe a situação”.

Questionada, a Prefeitura informou, por meio de nota, que, no período que antecedeu o lançamento da nova plataforma, equipes da PJF trabalharam no planejamento da nova ferramenta, “para que fosse possível levar a conhecimento público dados devidamente apurados, objetivos e de relevância”. O texto afirma, ainda, que a PJF “sempre optou pela transparência e garantia de informações precisas, prova disso que todos os números foram mencionados em coletivas de imprensa e transmissões ao vivo realizadas por essa instituição. Além disso, sempre foram informados para imprensa, pesquisadores e demais entes que demandaram”.

Em transmissão ao vivo, também na última segunda, o prefeito Antônio Almas (PSDB) lançou uma plataforma de transparência e comunicação direta com a população sobre ações de enfrentamento e prevenção à Covid-19. Pelo site também é possível acompanhar dados diários da situação epidemiológica de Juiz de Fora. Além dos número absolutos, foram disponibilizadas informações sobre taxa de isolamento, ocupação de leitos, incidência de óbitos, entre outras. A plataforma pode ser acessada por meio do site.

Indicadores

Conforme prevê o projeto estadual, entre os indicadores de capacidade assistencial e de incidência da pandemia que deverão ser levados em consideração para a transição entre as ondas do Minas Consciente estão a proporção de leitos UTI ocupados; o tempo médio de atendimento às solicitações de internações em leitos de UTI; o comportamento da curva de casos confirmados e estimados; a taxa de incidência e de mortalidade por síndrome respiratória aguda grave hospitalizado e o monitoramento do isolamento social.

Durante a transmissão na segunda, Almas reforçou que se os índices preconizados pelo Estado não forem atendidos pelo Município, não haverá transição de onda. O chefe do Executivo admitiu, inclusive, a possibilidade de “lockdown” caso os dados demonstrem piora do cenário da doença na cidade, e reforçou, ainda, que serão avaliados indicadores não só do município, mas de toda a macrorregião de Juiz de Fora, para que o governo estadual determine ou não o avanço do programa na região.

Postado originalmente por: Tribuna de Minas – Juiz de Fora

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