Qualificação e preconceito desafiam empregabilidade LGBTQIA+

Em um cenário de crise econômica intensificada pela pandemia do coronavírus, com o fechamento do comércio não-essencial e a paralisação de serviços, aumentaram os desafios para se conseguir um emprego ou manter-se empregado no Brasil. Para as pessoas LGBTQIA+, que já enfrentam obstáculos para obter formação escolar e profissional e se colocar no mercado de trabalho, o quadro atual agravou a busca por empregabilidade, visto que muitas dessas pessoas têm trabalhos informais, em espaços artísticos e em serviços voltados para o entretenimento, que não estão funcionando desde março. O tema foi assunto do quarto dia de atividades da IV Semana Rainbow da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), em uma discussão que permeou a falta de políticas públicas robustas e integradas para a geração de emprego e renda para esta população.

Fe Maidel, psicóloga e diretora da Câmara de Comércio LGBT, falou à Tribuna e participou da Semana Rainbow da UFJF (Foto: Arquivo pessoal)

A psicóloga, comunicadora, artista plástica, ativista trans e diretora de empregabilidade e qualidade da Câmara de Comércio LGBT, Fe Maidel, foi uma das convidadas para a roda de conversa “Empregabilidade LGBTQIA+, olhares para o futuro”. À Tribuna, ela falou sobre os principais gargalos para que as pessoas LGBTQIA+ consigam uma colocação e a falta de perspectiva para a geração de postos de trabalho, muito em decorrência do alto número de desempregados no Brasil, que era de 12,4 milhões até o fim de junho. “Estamos desguarnecidos de políticas públicas. Então, o que acaba acontecendo é que a população LGBTQIA+, que antes da pandemia tinha como meio de sobrevivência fazer pequenos trabalhos, como freelancers, ou na carreira artística, se vê alijada desses meios e se vê sujeita aos dessabores das coisas”, diz Fe.

Para exemplificar essa situação, ela cita os trabalhares de boates, casas noturnas e teatros, que participavam como ajudantes, camareiros ou em qualquer outro posto dentro dessas estruturas, que se viram sem ter com o que contar desde março. “Muitos não conseguiram acesso nem ao auxílio emergencial. Se pensarmos friamente, não é só a população LGBTQIA+ que passa por isso, mas as populações periféricas estão em situação muito semelhante.”

Com a pandemia, a vulnerabilidade social desta população ficou ainda maior. Há quem não têm onde morar, o que comer, assim como há muitos LGBTQIA+ sendo expulsos de casa. “A pandemia acirrou os humores de tal forma que as pessoas começam a discutir por nada. Chega até mim casos de pessoas que não aguentam mais ficar em casa e não têm para onde ir, não têm trabalho.”

Para ela, a principal demanda é a criação de políticas públicas que revigorem os setores da economia que foram prejudicados com a pandemia e que geravam renda para muitas pessoas LGBTQIA+. “O que fazer? Infelizmente, não tenho soluções, não tenho nada que não esbarre no poder público. A economia se molda da base da pirâmide para cima. Se o pequeno tem trabalho e tem uma pequena renda, ele começa a alimentar a economia local, e isso começa a se movimentar”, diz, sobre a necessidade de reabilitar esses empregos.

‘Acesso a formação é o primeiro obstáculo’, diz pesquisador

O professor Anderson Ferrari, um dos coordenadores do Grupo de Estudos e Pesquisas pesquisas em Gênero, Sexualidade, Educação e Diversidade (Gesed) da UFJF, corrobora que a empregabilidade é o grande desafio da população LGBTQIA+, por vários fatores que se somam. Para ele, a luta por cidadania, que passa pela necessidade de emprego e de acesso à educação, permeia essa discussão. “O emprego diz muito mais do que uma carteira assinada e um salário no final do mês. Diz de um pertencimento e de uma ideia de cidadania fundamental para todo mundo.”

Nesse sentido, o primeiro obstáculo a ser vencido para melhorar a empregabilidade passa pelo processo de formação, que afeta diretamente a comunidade. “Não só as escolas, mas as faculdades, são ambientes muito difíceis para algumas pessoas. Acontece um processo de expulsão da população LGBTQIA+ dos bancos escolares e da universidade. Não podemos dizer que elas evadem. Elas são expulsas por processos de violência e agressões que vivenciam”, destaca Ferrari. As escolas não estão preparadas, conforme o professor, para discutir essas questões e trabalhar com a diversidade.

Desse modo, para reverter o problema, é preciso encontrar meios de manter a população LGBTQIA+ dentro dos quadros de formação, tanto escolar, quanto profissional, técnico e acadêmico. Havia algumas iniciativas voltadas para essa necessidade, segundo o professor, como cursos voltados para a profissionalização de pessoas trans ou travestis, mas eles foram suspensos antes mesmo da pandemia. Com a Covid-19, entretanto, o acesso à formação ficou ainda mais prejudicado, porque muitas pessoas dentro da população LGBTQIA+ não têm acesso aos mecanismos básicos para acompanhar o ensino remoto.

Ainda não é possível, segundo Anderson, prever quais serão as consequências ao fim da pandemia. “Se vai afetar a população de forma geral, a tendência é afetar de maneira mais cruel a comunidade LGBTQIA+. É difícil para uma pessoa trans conseguir emprego, mesmo com o nome social. Para a pessoa travesti também é muito difícil. Nossas escolhas ainda estão muito baseadas em um modelo heteronormativo, que afasta qualquer um que se distância disso”.

Mudança no olhar

Para os especialistas, uma importante mudança que precisa acontecer é na visão cultural do todo. “As pessoas LGBTQIA+ não são vistas como humanas. Enquanto for assim, elas serão vistas como aquelas que precisam ter menos direitos, menos chances. É preciso inverter isso”, destaca o professor Anderson Ferrari. Esse entendimento passa pela base da concepção do Movimento LGBTQIA+, do século passado, como reforça o pesquisador. Entretanto, ainda há a necessidade de desconstruir as imagens negativas da comunidade e construir imagens positivas, problema que atinge a todos os grupos da sigla em algum grau, em alguns casos, em níveis mais elevados, como pode ocorrer com as pessoas trans e travestis.

Falta, então, uma ação integrada, robusta, que não seja isolada no contexto social, mas que modifique toda a estrutura cultural que ainda sustenta as relações de trabalho. Para Ferrari, ainda é fundamental modificar a mentalidade das pessoas. “É preciso ter uma mudança cultural, que passa por um processo educativo, de investimento do governo. As empresas que contratam pessoas LGBTQIA+ precisam ter apoio. Deve ser construído um vínculo entre o governo e movimento social que facilite essa empregabilidade.”

Outra possibilidade é a busca por formas de oferecer capacitação profissional, por meio de uma aproximação com as empresas. Mas, para ele, falta colocar em pauta a discussão para os governos com um tratamento mais adequado de empregabilidade para a população LGBTQIA+. Formação e investimento precisam caminhar juntos, uma não anda sem a outra, frisa Anderson.
Soluções econômicas

Fe Maidel pontua ainda que essa mudança no olhar pode colaborar para que haja soluções econômicas que vão beneficiar, inclusive, todo o cenário. “Em um momento como esse, é muito importante que a gente pense que pessoas encaradas como diferentes ou fora do padrão podem guardar soluções de trabalho e econômicas que você pode desconhecer. Quando uma pessoa se propõe a contar para todo mundo quem ela é, como sente – e isso é uma questão base da população LGBTQIA+, ela guarda dentro dela as sementes do criativo.” Essa característica, segundo a psicóloga, dota de muita força e coragem as pessoas que fazem parte dessa população. “Proponho uma mudança de olhar e percepção para essas pessoas, porque elas podem ajudar a alavancar muitos negócios.”

Empresa local busca equipe plural para criar ambiente receptivo

Um exemplo de estabelecimento local que contribui para ampliar a empregabilidade da população LGBTQIA+ é o bar Birosca. A contratação de pessoas LGBTQIA+ no estabelecimento se deu de maneira muito natural, conforme um dos proprietários, Thiago Venâncio, que também atua como gerente. De acordo com ele, sempre houve a preocupação de criar um ambiente receptivo e que abrace o universo LGBTQIA+, pois, para ele, um espaço que acolhe a diversidade pode atender a todos.

Por conta dessa preocupação, Thiago explica que o estabelecimento acaba atraindo pessoas LGBTQIA+ interessadas em trabalho, por deixá-las à vontade. “Atualmente, boa parte do nosso quadro de funcionários é LGBTQIA+, e isso nem é um critério na hora da contratação. Assim, a gente vai formando boas equipes de trabalho, com a tendência a serem mais abertas à diferença.” Para o empresário, quanto mais plural for a equipe e o ambiente, mais vivências e visões de mundo eles terão. “Além de ser o mínimo aceitável, acredito que isso só faça a empresa crescer.”

No Bar Birosca, boa parte dos empregados é LGBTQIA+. Para gerente, diversidade contribui para o crescimento da empresa (Foto: Divulgação)

Empreender

Para aqueles que buscam criar um negócio próprio, outro caminho possível, que também foi mostrado durante a Semana Rainbow da UFJF, é a possibilidade de empreender. Independente do segmento, a modalidade tem ajudado a pessoas LGBTQIA+ a gerar emprego e renda. De acordo com o analista Paulo Veríssimo, oferecer ferramentas para que as pessoas possam constituir seus negócios e serviços também é uma forma importante de promover a empregabilidade.

Com o comércio digital, hoje há inúmeras questões que precisam ser pensadas, antes de abrir um negócio. Planejamento, pesquisa de mercado, estabelecer a rede de fornecedores e cálculo de riscos são as premissas básicas para qualquer empreendedor. “Há segmentos que independente da pandemia ou não, têm crescido, então, identificando as oportunidades é possível pensar em bons negócios. O empreendedor LGBTQIA+ precisa ter esse olhar, com base na informação.” Ele ainda pontua que o Sebrae recebe e orienta empreendedores por meio de seus canais digitais e também em atendimento presencial com horário marcado.

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Postado originalmente por: Tribuna de Minas – Juiz de Fora

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